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“Todos os fogos o fogo”: um verdadeiro banquete sociológico

Uma autoestrada. Um engarrafamento. Mote para retratar o humano na sua generosidade e desentendimento. Contos de Julio Cortázar na “Estante JE”: a sugestão de leitura desta semana para vencer o confinamento.
10 Maio 2020, 11h07

 

Tudo começa com um acontecimento absolutamente banal: um engarrafamento na autoestrada que liga a pequena cidade de Fontainebleau e Paris. Ninguém sabe o que esteve na origem do infortúnio. Motores desligados, condutores resignados. Os personagens não têm nome, são identificados pela marca do respetivo carro. Temos a rapariga do Dauphine, o casal do Peugeot, as freiras do 2CV, os rapazes do Simca, os idosos do Citroën boca-de-sapo, o soldado do Wolkswagen… Resistem ao desassossego que pode rapidamente dar lugar ao alvoroço, ao explosivo, e escolhem o diálogo entre ‘vizinhos’.

A rádio cria a ilusão de estarem ligados ao mundo. Mais notícias passam sem nada esclarecerem. Apenas debitam que em breve tudo estará resolvido. Avançaram 40 metros numa tarde… Problemas e conflitos emergem, ou não estivéssemos entre humanos. Neste tempo e lugar suspensos – espécie de não-lugar – nascem amizades e desentendimentos, os automóveis transformam-se em bares, hospitais de campanha, mercearias. Uma nova sociedade ganha forma.

A noite instala-se. Os carros continuam imóveis. As horas (dias?) arrastam-se. O apetite aperta, dá lugar à fome. Ninguém previra tal coisa. Apenas regressavam de um fim de semana fora da capital. Um interlúdio dá lugar a um pesadelo. Velhos adoecem, outros ajudam como e com o que podem. Respira-se alguma solidariedade. É preciso entreter o tédio, enganar o tempo. Há amor no ar. Há quem anseie tomar um duche. Há quem sonhe, simplesmente, nunca ter vindo pela autoestrada do sul.

Há muitas estradas que levam a Julio Cortázar. Esta é uma delas. Argentino nascido em 1914 em Bruxelas, estudou em Buenos Aires. Quando já lecionava Literatura Francesa participou numa manifestação contra a política populista de Peron. Foi detido e viu a carreira académica ser-lhe vedada.

Assumiu os comandos de uma editora entre 1946 e 1948, continuou a estudar (Direito e Línguas) e dedicou-se à tradução. Começou a escrever ao mesmo tempo que o regime de Peron ganhava laivos de ditadura. Publicou a primeira coletânea de contos em 1951, “Bestiário”, numa revista dirigida por um tal de Jorge Luis Borges. Nesse mesmo ano, as perseguições de que foi alvo levaram-no a escolher o exílio. Paris foi o destino e a cidade que não mais abandonou.

Prosseguiu na estrada dos contos com “Final do Jogo” (1956) e “As Armas Secretas” (1959), antes de se aventurar no romance. “Os Prémios”, obra desconcertante e antecâmara dos mundos fantásticos que irá desenhar ao longo da vida, antecedeu a sua obra mais conhecida e a que mais terá marcado a literatura da América Latina, “O Jogo do Mundo (Rayuela)”, publicada em 1963.

Esta coletânea de contos, “Todos os Fogos o Fogo”, editada pela Cavalo de Ferro, abre com A Auto-estrada do Sul, mote desta sugestão de leitura, espécie de banquete sociológico e de atalho para os mundos reais e ficcionados de Cortázar.

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