Tirando a inversão na ordem dos algarismos, George Orwell encontraria decerto motivos para sorrir se pudesse ouvir políticos que, em vez do “quatro patas bom, duas patas mau”, incessantemente repetido às ovelhas pelos protagonistas de “O Triunfo dos Porcos”, arremessam aos adversários uma espécie de “duas rodas bom, quatro rodas mau”.

Assim sucedeu na apresentação do programa de Fernando Medina, recandidato à presidência da Câmara de Lisboa, que colou o adversário Carlos Moedas aos negacionistas das alterações climáticas por defender uma política “para estimular a utilização de carros dentro da cidade”.

Em causa está a intenção do social-democrata de construir silos automóveis em todas as freguesias da capital e, sobretudo, a promessa de acabar com a ciclovia na Avenida Almirante Reis, comprovadamente eficaz na dissuasão do tráfego automóvel, pois o estrangulamento que provoca decerto permitiria dispensar photo finish numa corrida entre um burro (desde que o animal se equilibrasse em cima de uma trotineta) e um Ferrari, como aquela em que o animal triunfou sobre o bólide na Calçada de Carriche em 1993, quando António Costa se candidatou (com menos sucesso do que o burro) à Câmara de Loures.

Do alto do seu pedestal de sustentabilidade, políticos como Medina hesitam cada vez menos em lançar fatwas sobre os automóveis, aos quais aparentemente só reconhecem préstimo quando os proprietários destinam boa parte do que pagam nos postos de abastecimento ao Estado, sob forma de imposto sobre os produtos petrolíferos.

Este fundamentalismo poderá estar muito em voga, mas torna-se mais difícil de compreender quando nos últimos anos se intensifica a pressão junto das marcas para eletrizarem a oferta de viaturas lançadas no mercado. E quando se torna evidente que bicicletas e afins nunca poderão ser uma alternativa válida para muitos cidadãos, cujas vidas não lhes permitem abdicar das características de um automóvel. Mesmo que isso comece a parecer um ato de resistência individual a uma sociedade cada vez mais perigosamente coletivista.