Será sempre um dia luminoso e radiante que, desobscurecendo a massa espessa que ensombrava um país, trouxe a clareza da aguardada manhã. Esta aurora ditou o fim da luta pela preservação de um imaginário poisado num império que acabou transformado num cemitério de vidas e de sonhos desfeitos.

D´Abril desabrochou um país. Desfez-se o cinzento espesso, preso a um passado distante que da Europa se desalinhava em prosa e poesia. Em direcção ao Sul, a narrativa imperial opressiva era questionada pelos que almejavam ser um Sul livre. E essa liberdade era poesia, a poesia de uma nação. Era uma liberdade escura, mestiça e branca, na confluência de línguas e de povos cujos corpos haviam conseguido libertar-se do som da opressão sem as demandas do Norte.

Abril alinhou a poesia e a prosa na evocação do direito ao canto livre e ao dançar da kizomba. A morna não fez Abril, mas, o semba, a marrabenta e o gumbé, sim. De vozes quentes e de corpos felizes e autodeterminados nasceu um novo país, com um outro fado, de menos passado e mais futuro.

Cada povo tem o seu fado (e o seu semba, claro), na dimensão da sua vontade colectiva, com Abril. Sem Abril, o país de pretéritos. Sem Abril, perpetuar-se-ia a resistência em teatros africanos, onde corpos sem alma compunham uma epopeia de lágrimas trágicas. Lágrimas de orfandade e viuvez, de solidão, medos e desesperança.

Abril não foi um mero encerrar de portas. Abril permitiu a construção de uma nova porta por onde entraram novas formas de estar e de compreender o nós e o eles. Abriu-se uma possibilidade de amizade e de proximidade sem vinculações de superioridade moral.

O choro por um passado (ou será imaginário?) perdido ressoa em alguns cantos e em alguns versos esquecidos, alimentando perpetuamente um sentimento de saudade. O passado é um verso contra o presente que serve como desforra do sentido de vida imposta no agora. Abril é uma utopia que se alimenta a cada nova geração, uma dádiva da luta negra, mestiça e branca de homens e de mulheres pela conquista da sua liberdade. Foi com muito sangue de morte e com incontáveis lágrimas de tragédia que todas as gerações que se seguiram passaram a poder viver o dia mais belo de Portugal.

Abril é um grito de glória e um louvor a uma possibilidade existencial que me fez diferente. Abril é esperança e futuro, mas é também fruto de um legado de vários povos. Não existiria Abril sem as lutas na terra da minha gente.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.