Como tem sido referido por várias pessoas da direita à esquerda, o último filme de Ken Loach, “Eu, Daniel Blake”, é sublime. De facto estamos perante uma obra extraordinária que nos projeta para uma realidade crua e ao mesmo tempo tão próxima. O filme confronta-nos com os últimos meses infernais da vida de um carpinteiro britânico de 59 anos que se vê enredado nas teias da burocracia e dos serviços da segurança social, que deixaram de ser públicos e se transformaram em espaços de despossessão de relações sociais e de direitos de cidadania. Espaços privatizados por lógicas de outsourcing em que tudo é mercantilizado.

Daniel não pode continuar a exercer a sua profissão por razões de saúde, mas segundo os critérios de elegibilidade resultantes da avaliação de uma junta técnica e de um supervisor anónimos não tem o direito garantido a uma pensão e, por este motivo, é aconselhado a candidatar-se ao subsídio de desemprego. Apesar de ter descontado a vida inteira, terá de demonstrar através de intermináveis formulários online, feitos de perguntas inúteis, que merece uma prestação social. O ónus permanece assim do lado do cliente que já não é um cidadão pleno. Por sua vez, este tem de provar ao funcionário (que já não é público) que se encontra a cumprir devidamente o contrato com o Estado. O tal Estado que há muito perdeu a sua função básica de proteção social universal.

À medida que o filme vai revelando a miséria da vida de um ex-operário que entretanto se familiariza com uma mãe solteira sem condições económicas para alimentar os seus dois filhos, uma pergunta nos assola crescentemente até se tornar quase insuportável: como foi possível chegarmos a isto? O filme interpela-nos inevitavelmente a tirar consequências políticas do que aconteceu desde pelo menos o início dos anos 80 do século passado. Assim que as cenas mais revoltantes se sucedem vêm-nos à memória frases e imagens batidas sobre a ascensão de Thatcher ao poder e da sua agenda neoliberal que delapidou o Estado social e abriu a porta a uma privatização sem limites dos serviços públicos. Mas surgem outras interpelações, designadamente sobre a coresponsabilidade acrescida tanto da social-democracia, como da democracia-cristã que foram transigindo neste modelo liberal, contribuindo decisivamente para aprisionar o Estado às lógicas empresariais.

Este filme é sublime porque inquieta profundamente. Deixa-nos desarmados perante o infortúnio de um homem que não resiste à máquina devoradora que foi sendo construída politicamente ao longo de décadas e por consecutivos governos de diferentes cores políticas. Na verdade, trata-se de um filme sobre a sublimação do serviço público que chegou a ser sólido e se foi dissipando, em Inglaterra mas também em muitos países europeus, para um estado gasoso onde a função primordial de proteção social se esvaziou quase por completo.

Neste processo de sublimação, o uso e abuso da condição de recursos, para averiguar da elegibilidade do eventual beneficiário, efetivou-se no seu operador elementar, sendo o instrumento de eleição pelo qual o cidadão se transmuta para a condição de cliente que tem de fazer prova dos seus supostos direitos. A demonstração dessa prova representa um desafio (um jogo, como referia Daniel) adverso, mediado por uma burocracia cada vez mais fria e distante em plataformas digitais e comunicacionais descentradas da relação face-a-face. Mas neste jogo desumano são os mais vulneráveis que perdem sistematicamente e ficam irremediavelmente arredados dos seus direitos.

É por isso que no atual momento histórico não chega apenas pôr um travão político às investidas liberalizantes. É preciso ir mais além e considerar que em muitas políticas sociais a condição de recursos não representa a via mais recomendável. Torna-se assim imprescindível reabilitar o serviço público como um direito fundamental para todos e desincrustá-lo da sua condição privada.