Associa-se a democracia ao ato de votar. Considera-se que referendar questões importantes relativas a um país ou região é um dos deveres da democracia, o que espelha uma possibilidade de democracia direta que noutros casos não existe. E esta aceitação tem incluído o referendar questões como o direito à autodeterminação e independência.

Lembremos o caso de Timor Lorosae, que a nós portugueses tanto tocou, e da coragem do povo timorense a votar, mesmo sabendo que a Indonésia no dia seguinte os iria castigar. Claro que se trata de um caso extremo, resultante de uma invasão. Mas só quando a comunidade internacional pressionou, a Indonésia aceitou referendar a questão. E, claro, só os residentes em Timor votaram. Também aceitamos como expressão de democracia que os curdos referendem o direito a ter um território seu, seja no Iraque, ou fosse na Turquia.

A ligação da Catalunha a Espanha não resultou de uma invasão, mas de uma política de casamentos que, tal como chegou a acontecer com Portugal, uniu este país ao restante território espanhol. Quando Portugal no século XVII lutou pela independência, a Catalunha estava a fazer o mesmo, mas não logrou o seu objetivo. Contudo, as ambições nacionalistas catalãs subsistiram e foi com a ditadura franquista que estas se deixaram de expressar.

A chegada da democracia foi preparada com a manutenção do status quo: Espanha deveria manter a unidade territorial. A Catalunha, mesmo reivindicando a sua identidade específica, ficou. Mais recentemente, decidiu que não queria continuar a ter um sistema de finanças públicas centralizado em Madrid. A partir daí, tudo se complicou. Barcelona reclamava e Madrid batia o pé. Fez-se um referendo não vinculativo que mostrava que a degradação da relação política entre os dois poderes era uma realidade. O governo espanhol nunca conversou com a oposição. O rei manteve um silêncio ensurdecedor.

Ao ver as imagens do referendo e do que aconteceu no dia em que em Portugal se celebrava a democracia, percebe-se que a situação se tornou insustentável. Ao não querer perder politicamente, o governo central espanhol optou por perder ética, moral e politicamente, sendo o argumento legal cada vez menos plausível numa situação de tensão real, em que a população está nas ruas.

Todas as democracias, todos os regimes foram construídos numa base ilegal, porque começaram por ser proibidos. Fiquemos por Portugal e lembremo-nos que a oposição ao governo de Salazar e Marcelo Caetano era ilegal e lançava na prisão os opositores. E se todos tivessem respeitado a lei? Teríamos votado no domingo para as autárquicas? Pensar que democracia é ir a votos em quadros políticos imutáveis, é tão certo como se pensar que se chegou ao fim da história. Se a Europa e a Espanha querem continuar na história, têm de pensar que os quadros políticos são dinâmicos. Fazer política é negociar.