Vivemos uma ditadura do tempo. Não é uma tirania das maiorias nem das minorias, não é uma ditadura do relativismo, um fundamentalismo despótico ou outros fantasmas do medo nos nossos dias, mas sim uma ditadura impregnada na realidade quotidiana mais próxima e que, por isso, quase passa despercebida. O tempo que vivemos socialmente e a que nos conformamos como se a vida fosse assim, com as suas dificuldades próprias, a assumir adultamente, é na verdade uma construção pouco natural, muito intrusiva e com uma intencionalidade muito própria.
São três as conformações impostas ao tempo. Uma concepção do tempo sócio-económico como uma continuidade férrea, e sem falhas, materializada por uma juridificação das nossas relações com o passado e com o futuro. Uma aceleração da vivência para a qual somos compelidos à força, por um sistema que percebeu que a aceleração é a melhor garantia de não descolarmos do tempo. Uma concepção do tempo de vida como mercadoria, que faz da actividade social e individualmente realizadora que o trabalho deveria ser para as pessoas uma redução delas à categoria abstrata de seres mais ou menos produtivos. Todas estas três conformações do tempo — contínuo e sem falhas, acelerado, medida de produtividade – são componentes de um dispositivo que garante, como se tudo fosse absolutamente natural, justo e livre, uma acumulação ilimitada.
Tempo sem entropia — uma apropriação da concepção do tempo
Em grande medida, os autores do nosso tempo presente já morreram, agindo por eles a memória dos seus direitos de propriedade. Hoje, diante de uma desigualdade cada vez maior, pode dizer-se que cada vez mais pessoas se veem mais despojadas à nascença de capacidade de encarar o seu tempo como um tempo de que são autoras. Sob o paradigma da desigualdade e da acumulação, o que vale, acima de tudo, é uma memória, sem fissuras, de dívidas e de heranças — sem paralelo em mais nenhum plano da vida humana.
Noutros planos da nossa vivência, a memória convive com o esquecimento, a culpa convive com o perdão, a dominação com a libertação. Não encontramos um paralelo sequer nos fenómenos naturais, nos quais o princípio da entropia dita que a energia reutilizável é sempre menor do que a energia gasta. Dentro dos limites de uma mera analogia, falta ao tempo social contemporâneo descobrir e pôr em prática a sua lei da entropia. Ou seja, criar mecanismos de dissipação da acumulação, por exemplo, de dissipação parcial das heranças na forma de herança social.
Georgescu-Roegen, o percursor da crítica ao crescimento económico e autor da noção controversa de decrescimento, já no início dos anos 70 do século passado, evocava a pertinência de se aplicar a segunda lei da termodinâmica à economia. Mas já muito antes, Nietzsche, chamava a atenção para que os humanos têm uma faculdade de esquecimento, para além da faculdade de memória, mas que esta faculdade de esquecer estava sendo esquecida.
O aprisionamento das vidas na memória absolutamente conservada do passado económico, que lhes determina no essencial a condição actual, paradoxalmente respalda-se na teoria política dita libertária. Foi logo Robert Nozick, também nos anos 70, quem pressupôs, na sua maneira de considerar o tempo, a interdição de qualquer entropia, esquecimento, desperdício ou perda, garantindo-se assim as condições para uma concepção estritamente processual da justiça social. De acordo com esta, uma distribuição de recursos é justa, única e exclusivamente se foi legitimamente adquirida e transferida. Assim, quaisquer considerações redistributivas para além das da justiça da aquisição e da justiça da transferência são anuladas, seja qual for a realidade social que chegue aos nossos dias.
Na verdade, muito mais do que a justificação de um Estado mínimo em detrimento de um Estado social, este sequestro do presente e do futuro pelo passado é o maior legado do libertarismo ao neoliberalismo. Se o Estado pode passar a ser apenas mínimo, e inexistir além da garantia do funcionamento da memória dos actos legais, é porque a dominação migrou para fora do Estado, estando distribuída numa apropriação da concepção do tempo.
O tempo como meio social homogéneo
E é preciso acabar de vez com um enorme equívoco. Se Marx e os marxistas em geral têm razão quanto ao facto de o capitalismo ter criado valor à custa da força de trabalho de quem não tinha outra forma de se sustentar, valor que reparte com desvantagem para os trabalhadores, tal, porém, não basta para concluir que apenas o trabalho humano e nada mais cria valor. Provavelmente, não é possível formular uma teoria completa do valor, porque tudo pode ser factor de valor. É claro que Marx quis salientar a dependência do capital face ao trabalho. Daí ter pensado este último na forma abstrata de tempo de trabalho médio socialmente necessário, uma espécie de contraparte do próprio capital. No fim de contas, a distribuição do capital não seria mais do que a história do valor extraído do trabalho, que por sua vez não seria mais do que o capital em movimento na sociedade.
Isto não significa que o capitalismo teria mais direito aos seus lucros pelo facto de poder dizer que nem todo o valor veio do trabalho. Não deixa de haver uma expropriação na proporção inversa da sua concentração de riqueza. Mesmo não havendo um único trabalhador! Na verdade, isto significa, pelo contrário, que o capitalismo não é ameaçado por uma sociedade do fim do trabalho assalariado. Ao contrário do que assume o marxismo.
O trabalho assalariado não tem a importância de ser a contraparte do capitalismo e a abolição do trabalho assalariado não vai ser a abolição do capitalismo. E se o trabalho pode representar uma importante forma de integração social, não é por ser assalariado e assim estar mobilizado na luta contra o capital, mas é mesmo porque individual e socialmente o trabalho pode ser realizador.
O tempo acelerado
A aceleração colectiva do tempo, a começar pelo processo socioeconómico e a passar pela interacção nas redes sociais, é uma forma de dominação entre nós e de dominação do mundo além nós. Arrasta todo o mundo, cada vez mais vulnerável diante do nosso poder, para um esforço e risco descontrolados na necessidade de sobreviver, que acaba por justificar sempre ir mais longe, na extracção, na produtividade, no esforço exigido a todos e a tudo. A obsolescência programada só na superfície é um truque para consumir mais em menos tempo, numa voragem consumista.
Mais profundamente, é dispor o tempo social da forma certa a que fiquemos naquela condição. A voragem é da própria actualidade, logo desactualizada pela pressão de uma nova actualidade, mas não porque haja uma pressão genuína, urgência atendível, mas porque a forma a que conformamos o tempo assim o impõe, mesmo se para dar curso à banalidade e ao tédio. As conformadoras por excelência do tempo acelerado são as redes sociais, desenhadas intencionalmente (mesmo se não deliberadamente) para amplificar o instante presente e deixar cada vez mais remoto e inacessível o que passou.
E nisto corre uma voragem do próprio pensar, em fuga permanente de si mesmo, ele mesmo apenas mais um item de obsolescência programada, a ponto de se ir tornando insustentável uma presunção de verdade e de validade argumentativa que não obsolesça. É esta a novidade que importa assinalar quando se fala de pós-verdade e que dá sentido à ideia de pensar devagar.
Na medida em que são construções artificiais, estas três conformações do tempo devem ser politicamente disputáveis, objecto de uma agenda de transformação. Chamemos-lhes “política pelo tempo”.
Primeiro, construir uma tradução legal das nossas relações com o tempo que introduzam mais formas de dissipação da acumulação, de modo a libertar o futuro de um constrangimento excessivo exercido pelo passado sobre o presente, redistribuindo oportunidades (a todos e ao próprio mundo). Segundo, ir dissociando o trabalho, enquanto actividade social e individualmente realizadora, da necessidade de sustento, ou da sobrevivência. Acabar com essa confusão (em inglês: entre “work” e “labour”) não tem de ser uma revolução súbita, mas um caminho a fazer que também passa por ir acolhendo formas de rendimento básico incondicional. Terceiro, é preciso começar a travar — com impostos, multas e outras perdas de rendimento — todo o tipo de externalidades negativas que o aceleracionismo impõe ao mundo social e ao mundo natural. Para isso, é preciso desenvencilharmo-nos do mito de que temos de ir cada vez mais depressa. Não estamos em corrida com ninguém para além de nós mesmos — uma corrida desenfreada que ainda acaba por nos deixar pelo caminho.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.