A expressão ética republicana é muitíssimas vezes fonte de mal-entendidos. Não é muito bem aceite por monárquicos, que entendem que a expressão tenta limitar a ética a quem é republicano. Não é, a maior parte das vezes, usada com rigor pela brigada da tradicional esquerda republicana, que a usa precisamente com a arrogância de uma certa exclusividade de grupo. Em boa verdade, ambos acabaram por desvirtuar o conceito, uns por preconceito, os outros por apropriação indevida e deturpação óbvia.
O conceito pode ser aplicado a muitas das monarquias de hoje com propriedade, e não faz sentido algum em grande parte das repúblicas. Esta ideia de uma ética na gestão da coisa pública, a virtude na res publica, nasce, ou teoriza-se, inicialmente com Sócrates (o filósofo grego, claro!) e reforça-se de modo ainda mais evidente no seu discípulo Platão. Pretender que há alguma ligação entre o conceito de ética republicana e a Primeira e Segunda Repúblicas portuguesas é um rematado disparate. Tentar fundá-la na Revolução Francesa é uma ambição desonesta do jacobinismo manipulador.
Vem isto a propósito da profunda descredibilização da república a que vimos assistindo. Das três Repúblicas que Portugal teve após o golpe sangrento de 1910, a Primeira foi o período mais tresloucado e instável dos nossos nove séculos de história, e a Segunda foi a ditadura mais longa do século XX europeu. A Terceira República está a ser destruída pelo Partido Socialista.
É da tradição política dos últimos 43 anos que o PS se assuma como dono do regime, e a esquerda como a sua inquestionável guardiã. Daqui, decorre toda uma postura facilmente identificável e materializável nos mais caricatos episódios. Se até nos podemos rir com o célebre “saia da frente ò Shô Guarda!”, já terá menos graça, pela gravidade que encerra, o também célebre “quem se mete com o PS, leva!”. A sensação de “direito superior”, ou de “legitimidade histórica”, na gestão dos assuntos do Estado acaba sempre mal.
Olhando para trás, apenas Guterres foi discreto e cauteloso nesta matéria, tendo fatalmente sido triturado pela máquina socialista, ávida de tomar conta do que considera inquestionavelmente seu. De resto, misturam a dignidade do Parlamento com o caso Casa Pia, mandam calar adversários, destituem governos para repor a “normalidade dos amigos”, usam e abusam do Estado, como se lhes pertencesse por direito divino.
Os casos de Manuel Pinho e de Carlos César, sendo diferentes, atestam esta forma de estar. César é, acima de tudo, um homem sem vergonha; vive do Estado, empregou a família no Estado, mexe-se como ninguém nas oportunidades que o Estado proporciona, sacando o que deve e o que não deve. Aparentemente, não será fácil provar a ilegalidade da contratação de todos os seus familiares que vivem dos nossos impostos, como parece não haver uma lei específica que puna a acumulação indevida de subsídios de deslocação, mas também há, por muito que queiram fazer esquecer, uma diferença substancial entre quem age com lisura e ética e o videirinho que se movimenta em busca de vantagens próprias nos limites cinzentos da lei.
Manuel Pinho, sabe-se agora, receberia um ordenado chorudo do BES enquanto ministro de Sócrates e colega de Costa. É legítimo perguntarmos se Pinho recebia a maquia milionária apesar de ser ministro, por ser ministro ou para ser ministro. Já há quem defenda que era legítimo. Legítimo nunca será, poderá eventualmente vir a saber-se que anda nas tais zonas cinzentas da legalidade, não sendo crime, e isso para o PS basta.
A estes casos podíamos somar Vieira da Silva com o seu passado, a sua família, as deslocações da família e a forma selectiva e persecutória como dirige a Segurança Social. Podíamos somar muitos outros, os grupos de poder, as “solidariedades”, o regabofe a que nos habituaram.
Este Governo toma posse e impõe-se com base num expediente legal; pela primeira vez em Portugal, governa quem perdeu as eleições. É legal e constitucionalmente permitido. Não é legítimo, em face da história e da tradição da Democracia Portuguesa. Para o PS chega. É exactamente este raciocínio do máximo aproveitamento dos expedientes que a lei permite, que separa a ética republicana do oportunismo socialista. Na ética republicana, não basta estar no limite da legalidade para ser eticamente aceitável. Na ética republicana, ao contrário da troupe de Costa, o poder exerce-se criteriosamente na interpretação do que é o interesse público, e não os interesses particulares das diferentes clientelas que exigem satisfação.
Na ética republicana, a justiça e a equidade valem sempre muitíssimo mais que o amiguismo e o favorecimento dos mais próximos. Não, não é pela mão deste PS que Portugal vai conhecer a ética republicana que a Primeira e a Segunda Repúblicas lhe negaram. Bastar-nos-á um grupo de gente habilidosa o suficiente para não ir presa pelos seus actos? César é menos condenável com a usurpação que fez de dinheiros públicos, porque não há uma lei específica que o puna? É isto a tal ética irrepreensível que sossega o PS?
Era, portanto, bom, que sujeitos como Ferro Rodrigues se dedicassem ao conceito do pudor republicano. O homem que Costa fez questão de impor como segunda figura do Estado, é a última pessoa que poderá falar em ética, republicana ou de qualquer outra ordem. Logo, voltando à Grécia antiga, o que quer dizer “eticamente irrepreensível” na boca de quem nega a ética por pensamentos, palavras, actos e omissões?
Costa, outrora o homem forte do governo Sócrates, ressuscitou muitos dos que lá estiveram e devolveu-lhes o poder que interromperam, fez de César presidente do seu grupo parlamentar e presidente do Partido Socialista, fez de Ferro Rodrigues presidente da Assembleia da República. Há aqui um traço de profunda coerência, e isso não é bom para o país. Deixem, por favor, a ética republicana em paz; não se aplica.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.