Nas últimas semanas observaram-se uma série de manifestações públicas no setor da ciência e do ensino superior a propósito da discussão na Assembleia da República do decreto de lei sobre emprego científico proposto pelo atual governo (DL 57/2016). Como já se percebeu, o dito decreto não só não responde minimamente às necessidades do sistema, como gerou um descontentamento alargado na comunidade científica.
As várias tomadas de posição sobre o estado do Sistema Científico e Tecnológico Nacional (SCTN), veiculadas em artigos de jornal, comunicados de imprensa, audições parlamentares, concentrações, e até num manifesto subscrito por mais de mil pessoas, revelaram entre outras preocupações um enorme alerta. Um alerta que exprime a frustração e a saturação crescentes que tomaram conta do SCTN e que atingem centenas de profissionais. Estes chegaram ao limite, estão fartos de tanta imprevisibilidade e de serem recorrentemente arredados de direitos fundamentais de proteção social e de cidadania.
É pois hora de enfrentar de vez os problemas da precariedade laboral que se generalizaram no SCTN e de efetivar uma resposta política à altura, assente numa estratégia reformadora.
Talvez por ser relativamente recente, o SCTN, assim como a figura do investigador, têm sido alvo de vários misticismos que urge desconstruir. Saliento dois que recorrentemente emergem no espaço público: o ‘investigador-empreendedor’ e o ‘investigador-tarefeiro’. O primeiro exacerba a excelência como a característica primordial do investigador cuja função mais relevante é a de angariador de prémios e de flashes mediáticos. O segundo subsume o investigador ao horizonte dos financiamentos das bolsas e aos prazos limite dos projetos científicos.
Estas mistificações, apesar de parecerem contraditórias, surgem por vezes associadas e comungam ambas de um mesmo pressuposto ideológico que concebe a atividade científica dissociada do serviço público: uma ciência crescentemente mercantilizada e cada vez mais sujeita às lógicas incertas e imprevisíveis que imperam nos mercados.
O último artigo de Miguel Sousa Tavares publicado no jornal Expresso (21/01/2017) é ilustrativo destas imagens deturpadas que se constroem sobre o SCTN. Segundo este, a figura do investigador tende a ser considerada não como um profissional, mas como uma situação passageira (de projeto em projeto, de bolsa em bolsa, de contrato em contrato) sujeita ao risco máximo de ser bem ou mal sucedida. Nesta conceção, o investigador, seja ele tarefeiro ou empreendedor, não deve almejar aos direitos básicos e laborais que enquadram as profissões ‘normais’.
Face a estas mistificações é preciso afirmar que a ciência tem de ser regulada como qualquer outra atividade laboral não devendo ser vista como a exceção. Se isso não acontecer no médio prazo corremos um sério risco de transformar o SCTN numa manta de retalhos, onde as situações passageiras se vão acumulando em percursos descontinuados que ora persistem e resistem, ora se perdem e se desperdiçam.
Em declaração recente, o primeiro-ministro elegeu a promoção do conhecimento e o combate à precariedade como os dois objetivos principais da governação para que Portugal tenha capacidade de traçar o seu futuro de forma justa e sustentável. Não poderia estar mais de acordo. Mas é importante que estas palavras não signifiquem uma mera proclamação de vagas intenções e se concretizem de facto na prática política. Na verdade, não é admissível que seja precisamente no interior do sistema onde se produz o conhecimento primordial para o país, que proliferam e se encontram as situações mais desprotegidas e vulneráveis de precariedade laboral. Contudo a solução não passa por simplesmente atenuar a precariedade, mas sim por erradicá-la do SCTN.
Em tempos sombrios, pautados pela manipulação da informação e do conhecimento, no contexto dos quais irrompem conceitos como o de pós-verdade, torna-se ainda mais relevante perceber que uma das vias necessárias para enfrentar estas ameaças depende em grande medida da capacidade das sociedades e dos Estados consolidarem as suas instituições e os sistemas que produzem, divulgam e debatem criticamente o conhecimento científico. E não há consolidação possível sem garantir aos profissionais direitos básicos de proteção, de estabilidade e de continuidade das suas carreiras.
É imprescindível ‘desmercadorizar’ o SCTN e dotá-lo de previsibilidade. Trata-se, entre outras, de uma exigência básica que contribuirá para a preservação da democracia e da coesão da nossa vida coletiva.