Cena 1:
Um homem toma o pequeno-almoço à mesa de uma pastelaria enquanto lê o jornal. Termina e pede a conta. “Está pago por aquele senhor”, responde o empregado apontando para a porta. Em pânico o homem corre, carteira na mão, chamando o outro: “Você não me desgrace!!”
Cena 2:
Gabinete sóbrio. Dois homens conversam animadamente sobre os tempos da escola que partilharam. Na despedida, um estende um envelope: “Toma lá dois bilhetes para o teatro”. O outro olha desconfiado. “Não te preocupes. São dos mais baratinhos…”.
Longe vai 1984, mas nunca como agora estivemos tão perto de viver a realidade de George Orwell e do seu Big Brother, com a agravante deste ser obra e criação de cada um de nós, que passou a assumir os papéis de polícia, juiz e jornalista. Os tribunais são as redes sociais onde o contraditório não existe e onde a condenação é feita sem apelo nem agravo. Criámos a justiça popular, o linchamento público e assistimos impávidos à destruição do carácter, das carreiras e das vidas das pessoas. Da era da informação passámos à era da maledicência, da vingança anónima, da efabulação, da perseguição e do medo.
Quem tem hoje coragem para falar livremente ao telemóvel, comentar algo, agir em plena liberdade sem pensar que talvez possa ser mal-entendido, descontextualizado ou mesmo punido? Dizer coisas como: “um dia destes dou cabo de ti” ou “tu matas-me”, pode ser entendido como a confissão de uma qualquer culpa. Estar ou ser visto com, pode ser colocado na comunicação social como indício de cumplicidade ou até mesmo de corrupção.
Num mundo em que a informação transformou o tempo e o espaço no “aqui e agora” quem controla a informação que circula? Quem pode travar este Grande Irmão que teimamos em deixar que nos vigie dia após dia? Que é feito da presunção de inocência e da liberdade numa sociedade onde todos espiam todos?
A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.