(Estou completamente à-vontade para falar deste guião televisivo porque, em momento algum da minha existência, sequer simpatizei com o protagonista forçado. Se considero que foi um péssimo primeiro-ministro, sabemos, sem margem para dúvidas, que era um engenheiro para lá do medíocre pela falta de qualidade dos projectos que assinou. Dito isto, por mais interesse que possam suscitar as filmagens de um interrogatório, há limites que não podem ser ultrapassados. Este é um deles).
O Big Show Sic foi um programa de péssima memória colectiva, centrado num conjunto de personagens que se pautava pela sua grotesca excentricidade, habitualmente considerado o início do que se chamou a “televisão em movimento”.
Esta semana, em larga medida recuperando essa tradição, o mesmo canal televisivo decidiu servir-nos, em episódios, à laia de novela de mau calibre, trechos das gravações dos interrogatórios de Sócrates.
Desde logo, o que se estranha são os critérios que estão subjacentes a mostrarem-se aqueles e não outros quaisquer, tudo sob a confissão implícita dos jornalistas que afirmam não desconhecer que estão a cometer um crime. Em nome da defesa do Estado de Direito mas, na realidade, visando captar audiências num grupo empresarial moribundo, o que os ditos fizeram foi justamente praticar o que combatem. E, como é óbvio, não o terão feito sozinhos, uma vez que é inegável que tais gravações lhes terão sido disponibilizadas por alguém. Mesmo que a ministra venha dizer o óbvio, isto é, que a sua divulgação é crime, a questão será mais a de saber quem nos guarda dos guardas, uma vez que a dita fuga terá saído de alguém com acesso aos autos.
Por outro lado, e independentemente da nossa convicção pessoal sobre a culpabilidade de Sócrates, por algum motivo os julgamentos se devem fazer em sede própria e não em praça pública. O chamado quarto poder, isto é, a Comunicação Social apresenta-se, muitas vezes, diria até, demasiadas vezes, como uma espécie de arauto das virtudes e da independência quando, em rigor e em larga medida, obedece a agendas que são tão ocultas quanto a dos políticos. Presumir-se que a dita reportagem surgiu apenas por um qualquer apego à verdade é acreditar-se que o Pai Natal existe e, no caso, se chama Balsemão, o tal que não gostava – e penso que continua a não gostar – de jornalistas “sindicalistas”.
Há, portanto, limites que não podem ser ultrapassados, sob pena de passar a valer tudo, desde que se invoque um desejo de “verdade”.
Um Estado de Direito define-se (também) pela forma como trata os arguidos. Mesmo quando não gostamos. Principalmente quando não gostamos deles. Sócrates, por ter sido primeiro-ministro, não pode ter mais direitos que o comum dos mortais mas, refira-se, também não pode ter menos.
A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.