Roubo o título deste artigo ao subtítulo do livro Por uma sociedade decente de Eduardo Paz Ferreira, editado pela Marcador, em julho deste ano. Pareceu-me o mais indicado para este primeiro número do Jornal Económico. Aqui também se trata de um começo. Este projeto representa a esperança numa área em que nos habituámos a ver acabar em vez de começar. Estão de parabéns todos os que, fruto da sua resiliência, conseguiram reverter o que era mais uma Crónica de uma morte anunciada (título de Gabriel García Marquez).
Volto ao livro de Paz Ferreira, que me atraiu por duas razões: por falar de decência e por aludir a uma música de Simone e Ivan Lins que marcou a minha infância, Vai valer a pena começar de novo. O livro reflete os desafios das sociedades atuais, coloca questões incómodas, analisa o papel que as ideias e as utopias têm em sociedades marcadas pelo imediatismo e pelo consumismo, o consumo também de tendências e modas políticas que afastam o espírito crítico dos debates públicos, discorre sobre aquilo que se tornou o discurso dominante: a economia, as finanças e os mercados, desmistifica. E tudo numa prosa solta, espelhando o profundo conhecimento filosófico e cultural do autor.
Este livro propõe uma análise profunda dos projetos políticos nacionais e transnacionais, confinados a um mundo que se esvazia lentamente de ideias, de que decorre a necessidade de começar de novo. Pena que, no país que inspirou esta música, o recomeço político que hoje se vive represente um retrocesso de décadas. A trágica história de Dilma Rousseff, alvo de um julgamento político que determinou o seu afastamento, constitui um importante passo para a descredibilização do sistema político brasileiro. A gravidade assenta no facto de se ter assistido a um julgamento político, perpetrado por indivíduos indiciados por processos de corrupção. Acusavam a presidente de ocultação de dívida pública. Não sendo esta uma prática aceitável, tem sido uma constante tanto no setor público como privado (lembremos, por exemplo, o caso das instituições financeiras europeias e norte-americanas que também ocultaram prejuízos aos reguladores).
Os argumentos da destituição não foram políticos nem éticos. Foram exortações ao obscurantismo e à ignorância. Ao rever o filme Trash: a esperança vem do lixo, filme brasileiro cujos temas centrais são a corrupção e a desigualdade social, veio-me de novo à memória que é sempre possível começar de novo. Conquistar alguma decência também. Mesmo que o cenário pareça dantesco.