Um ex-primeiro ministro e um antigo ministro da Economia são acusados de cometer crimes no exercício de funções, naquele que será o maior escândalo de corrupção em 44 anos de democracia. Ambos pertencem ao partido do Governo, cujos atuais líderes, que com eles trabalharam lado a lado, fazem agora de conta que o assunto não lhes diz respeito, como se fosse natural um primeiro-ministro viver de “empréstimos” de um amigo empresário ligado a um grupo que ganhou milhões de euros em contratos públicos durante os seus governos. Independentemente das questões criminais, que serão resolvidas nos tribunais, esta é uma situação muito duvidosa do ponto de vista ético e que obriga a um juízo político. Pois ao contrário do que muitos tentam fazer crer, todos temos o direito de formar uma opinião fundamentada sobre o comportamento (assumido) de um político que pedia “fotocópias” para pagar as contas. E exercer este direito não é usurpar o papel dos juízes, nem impedir que Sócrates tenha um julgamento justo no local apropriado, que é o tribunal.
O problema é que o PS não é o único a fazer de conta que não existe um enorme elefante no meio do plenário em São Bento. Também o PSD e o CDS assobiam para o lado, talvez por terem igualmente os seus telhados de vidro, apesar de notáveis exceções como Margarida Balseiro Lopes (ver entrevista na página 6). O mesmo faz uma parte significativa da sociedade civil, imprensa incluída. Num país normal, o escândalo seria mais do que suficiente para que se apurassem responsabilidades políticas, mas aqui no pasa nada: o “respeito pela Justiça” é tanto, mas tanto, que só se falará sobre o processo Marquês quando este transitar em julgado, lá para 2030.
Até porque o que verdadeiramente tira o sono a muitas almas não são as suspeitas de corrupção ao mais alto nível, mas sim os malandros dos jornalistas que divulgaram gravações onde Sócrates contradiz o que dissera, durante anos, sobre a forma como pagava a sua vida em Lisboa e Paris. E olhando para o número de “especialistas” em ética jornalística que brotaram nos últimos dias, parece que todos os males da Pátria se devem aos jornalistas! Dos políticos, mais depressa surgirá uma “lei da rolha” para calar a imprensa do que uma reflexão sobre o flagelo que nos empobrece a todos: a corrupção.
Mas falemos, pois, de ética jornalística, dado que é esta que tem sido invocada. Em primeiro lugar, a divulgação das gravações (que, saliente-se, já não estão em segredo de justiça), é uma questão delicada e existem argumentos razoáveis dos dois lados. Compreendo, por isso, as posições de muitos advogados e jornalistas, incluindo vários amigos e outras pessoas que respeito, que consideram ilegítima essa divulgação.
É importante ter em conta que existem dois direitos em conflito, que os jornalistas devem ponderar no cumprimento do seu dever de informar, ainda que arriscando responder na Justiça: por um lado, o direito à privacidade; e, por outro, o direito dos cidadãos a serem informados sobre assuntos de interesse público.
O Código Deontológico prevê estas situações e especifica que “o jornalista deve respeitar a privacidade dos cidadãos, exceto quando estiver em causa o interesse público ou a conduta do indivíduo contradiga, manifestamente, valores e princípios que publicamente defende”. Esta exceção aplica-se, pois o interrogatório de um ex-primeiro ministro acusado de corrupção tem sempre interesse público. Pode-se argumentar que houve algum “voyeurismo” e que nem todas as imagens eram necessárias para atender a esse interesse público. Pode-se também questionar se os jornalistas fizeram o contraditório e confirmaram os factos, colocando-os num contexto significativo, como é seu dever. Mas essa discussão, que é pertinente, não pode ser confundida com o debate sobre a divulgação das gravações. São planos distintos.
Por outro lado, a contradição prevista no Código é evidente e flagrante: até ser preso, Sócrates dizia que vivia de heranças e de um empréstimo da Caixa. Algo que as gravações desmentem, com base nas palavras do próprio.
Há, claro, quem alegue que tudo já fora noticiado nos jornais e que as reportagens da SIC e da CMTV não trouxeram qualquer novidade. Mas dizer isto é ignorar que o alcance da televisão é muito superior e que ver e ouvir as gravações é diferente de ler transcrições. A forma como se fala pode ser tão relevante como o que se diz. Por exemplo, as gravações ajudam-nos a avaliar se Sócrates pedia empréstimos ao amigo ou, se pelo contrário, lhe dava ordens. Se os jornalistas querem realmente informar os cidadãos, de modo a que possam formar uma opinião fundamentada sobre este caso, não podem deixar de divulgar este material. Se este não é um dos raros casos onde o interesse público justifica a violação da privacidade, em que situações pode então esse interesse ser invocado?