Quem trabalha no sistema de Justiça tem de ter consciência da função fulcral que desempenha na sociedade e, por isso mesmo, das limitações que a mesma implica. Uma das limitações mais relevantes é a de comunicar. Não é por acaso que juízes, procuradores, inspetores, funcionários e advogados têm na essência dos seus deveres uma obrigação de reserva e de sigilo.
Mais do que deveres genéricos de profissão, sigilo e reserva são condições sine qua non de dignidade da Justiça e preservação do Estado de Direito (que nasceu para acabar com o “pelourinho”) e dos equilíbrios fundamentais na sociedade. Trata-se de conjugar o direito à informação com o direito à dignidade humana, assente em princípios como o direito à honra, ao bom nome, à privacidade e à presunção de inocência.
Numa sociedade como esta em que vivemos, em que os interesses de informação e desinformação são múltiplos, reconheço que seja complicado, para quem tem a função de zelar pela dignidade e funcionamento da Justiça, cumprir estes deveres. Mas é fundamental. E se a questão moral não chega para nortear o espírito de quem assegura o funcionamento da Justiça, há que lembrá-los que têm a obrigação legal de o fazer. Se não forem as pessoas que trabalham no sistema a dar o exemplo de respeito pela Lei quem será?
Nos últimos tempos, nas redações, temos assistido ao protagonismo crescente dos jornalistas ditos especialistas em questões de Justiça, a que generosamente chamam jornalistas de investigação. Tenho dificuldade em partilhar dessa generosidade. Na verdade, regra geral, não investigam absolutamente nada. Passaram, simplesmente, a ter acesso, “pela porta do cavalo”, a alguns atores fundamentais do sistema e via aberta para espaços do “aparelho” que deveriam ser uma espécie de locais sagrados. Mas para meia dúzia de jornalistas “bem relacionados” são uma via verde. E, assim, este jornalismo, mais do que informar, é porta-voz da agenda de determinadas fontes dentro do sistema de Justiça. Face ao repetitivo circuito de informação adotado, toda gente tem, pelo menos, uma fundada suspeita de quem são tais fontes que violam as suas obrigações, mas ninguém tem interesse em encontrá-las.
Já perdemos a conta às vezes que a Senhora Procuradora Geral da República anunciou a abertura de inquéritos à violação do segredo de justiça. Mas também já todos percebemos que não há interesse em terminar com sucesso tais inquéritos. Ou será que nos querem fazer acreditar que um Ministério Público que é cada vez mais eficaz na investigação de matérias bem mais complexas da criminalidade económico-financeira transnacional, não é capaz decifrar coisas mais simples, como apurar quem anda a violar “dentro de casa” os seus deveres de reserva e sigilo, cometendo continuadamente o crime de violação do segredo de justiça e afetando a credibilidade de todo um sistema?
São pessoas que não contribuem para a realização da Justiça, mas antes para a execução de um “justiceirismo” próprio de quem adota como exemplo fórmulas pouco democráticas de exercício da Justiça e que, mais do que se basearem na Lei, assentam na manipulação da opinião pública como “arma”. Talvez não seja por acaso que a Presidente da Associação sindical dos Juízes tenha declarado publicamente que o “Segredo de Justiça é uma batalha perdida”. Será que se fosse uma “batalha para ganhar” ficaria pedra sobre pedra no sistema?