A senhora dona Madonna, uma pessoa famosa por ser autora e intérprete de canções de fraca qualidade muito apreciadas por gente de mau gosto musical, decidiu vir viver para Portugal. Como seria de esperar, o país delirou com a novidade, presumivelmente pelo facto da senhora dona Madonna ter escolhido este “cantinho à beira-mar plantado” para viver a sua vida e pôr um dos filhos a jogar no Benfica ser mais uma prova de como “o nosso” é “o melhor país do mundo”. Na realidade, se prova alguma coisa, a mudança da senhora dona Madonna para uma luxuosa residência lisboeta prova apenas o quão profundamente injusto é Portugal.

A senhora dona Madonna, em virtude das suas populares canções, é rica. Para sua sorte – e de outras celebridades ricas que decidiram vir morar para Portugal, como Eric Cantona, Monica Bellucci ou Michael Fassbender, ou dos vários oligarcas angolanos ou chineses que fizeram o mesmo – Madonna não nasceu em Portugal e, por isso, pode beneficiar de uma medida política que os governos portugueses muito acarinham: os benefícios fiscais atribuídos aos “residentes não habituais” no nosso país, que lhes permite pagar uma taxa de IRS relativamente baixa ou, como no caso dos pensionistas de vários países que vêm gozar a sua reforma para Portugal, estarem totalmente isentos desse fardo.

Ao contrário da senhora dona Madonna, muitos portugueses não são ricos, e quase todos eles nasceram – e vivem – mesmo em Portugal. Por isso, não podem beneficiar do mesmo regime fiscal de que a senhora dona Madonna beneficia.

Alguns, precisamente por não serem ricos, até talvez estejam isentos do pagamento de IRS, mas isso não só significa que os restantes são sobrecarregados com uma taxa de IRS mais elevada do que seria noutras circunstâncias para pagar essas mesmas (justificadas) isenções, como não apaga o facto de até esses portugueses menos afortunados não poderem escapar ao pagamento de taxas de IVA cada vez mais elevadas, para compensar as receitas perdidas no IRS e as despesas com que os governos alimentam as suas clientelas. Tudo isto ao mesmo tempo que têm dificuldade em arranjar emprego, ou, se o arranjam, são mal pagos (quando não têm meses de salários em atraso ou pura e simplesmente trabalham de graça), e vêem os preços do arrendamento ou compra de casa inflacionados pela procura incentivada pelos benefícios fiscais a estrangeiros atribuídos pelo Estado.

Ou seja, para atrair gente rica para Portugal, um fim meritório e desejável, os governos portugueses criam para eles um país paralelo àquele em que nós vivemos, oferecendo-lhes benefícios de que os comuns portugueses não beneficiam, e que só podem oferecer precisamente porque eles ficam excluídos da oferta. Em vez de tornar Portugal um país apetecível para estrangeiros e portugueses, sejam eles ricos, pobres ou remediados, o Estado português (e os partidos que alternadamente o ocupam e dele sugam o sustento das suas clientelas) privilegia os já privilegiados à partida: torna Portugal um paraíso fiscal para os ricos de outros países, e um pesadelo para todos os que tenham tido o infortúnio de cá vir ao mundo.

É verdade que não há político que não faça discursos piedosos sobre a “tragédia” dos portugueses que “são forçados” a deixar o país, mas são as suas políticas que criam a injustiça de um país ideal para a senhora dona Madonna, mas do qual quem cá nasceu só pode querer fugir.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.