Em vez de um daqueles deputados que acabam eleitos no meio obscuro de uma lista de um grande partido, calhou ser o Livre a eleger porque elegeu a sua cabeça de lista. Joacine Katar Moreira (JKM) não foi eleita no fim de uma lista. A sua eleição não foi um acidente. Deu a cara, a voz e as ideias que tem a uma candidatura que o Livre não enjeitou. Pelo contrário, escolheu-a em eleições primárias. E o discurso político que a elegeu não foi diverso do que tem levado à Assembleia da República e ao espaço público. Mesmo que uma maioria de dirigentes do Livre não se sinta confortável com ele.

Assim, se JKM representa e continua a representar muito significativamente a representação que a elegeu, retirar-lhe a confiança política significa desprezar o dever de representação que o Livre assumiu enquanto partido que se apresenta a eleições. Nesse caso, e para ser consequente, o Livre deveria igualmente prescindir do direito à subvenção que adquiriu ao elegê­‑la. E em seguida mudar todas as regras e princípios em que assentou a sua construção, a começar pelos Estatutos.

Ter escolhido JKM em primárias não terá sido o maior erro da vida do Livre. O maior erro será retirar-lhe a confiança política, atalhando dificuldades, mesmo que inesperadas, e achando que se pode desfazer o que foi feito ao libertar JKM para um mandato de deputada não inscrita.

Não se pode, por maiores que sejam as razões de descontentamento que esta ou a anterior direcção do Livre tenham. Ou o eleitorado que elegeu JKM descobre que ela não o representou, faltou a compromissos eleitorais, e pressiona o Livre a retirar-lhe a confiança, o que até à data não aconteceu, ou o Livre estará a usurpar o eleitorado, que pode agora já não querer mas que, no momento eleitoral, quis.  E quis mais ainda porque JKM foi escolhida em eleições primárias.

Desta maneira, deixará cair não só a sua deputada e o eleitorado que a elegeu, mas também o respeito pelo compromisso eleitoral, base da própria política representativa, em Portugal ou em qualquer parte do mundo. Mais grave que ser um suicídio político é ser um acto politicamente injustificável.

Com horizonte político e não mera auto-referencialidade, o Livre ainda vai a tempo de perceber que o que importa não é JKM, mesmo se admitirmos como verdadeiro o que se diz: que possa ser intratável, que tenha fintado o órgão executivo e assembleia do partido, ou o diabo a quatro. Tudo isso pode ser mesmo muito desagradável, mas é assunto interno.

Encontrem forma de funcionar apesar do desentendimento. Façam um contrato, arranjem intermediários se não se puderem ver. Não conseguir nada disto mostra um partido imaturo, que não é capaz de fazer coabitar adversários e não consegue funcionar a não ser entre amigos, perfis mais ou menos parecidos social e intelectualmente. O normal é haver tanta luta política dentro dos partidos como fora deles. Até mais. O pior que JKM tenha feito não há-de ser muito diferente do pior que se faz habitualmente noutro qualquer grande ou médio partido do espectro político português.

Quem ganha eleições geralmente varre tudo em seguida, para garantir que quem precedeu já não manda. É assim nos PS, PSD, BE, ou CDS desta vida, aqui e em qualquer parte do mundo que jogue a competição pelo poder político. O Livre deve ser diferente?

Sim, deve, e tem de acreditar nos meios de que dispõe para ser diferente, mas nunca quebrando o compromisso eleitoral de representação. Nunca passando a ferro o pluralismo interno, mesmo se o antagonismo chega ao ponto da incompatibilidade pessoal. Retirar agora a confiança política a JKM é cruzar todas essas linhas vermelhas. É fazer pior do aquilo que se critica aos outros partidos.

Era também indispensável o Livre fazer a pedagogia interna de que um partido não é uma causa, mas um instrumento para causas públicas. Os seus princípios não são uma Constituição, a justificação da sua existência não é como a de um Estado. Não se é por um partido como se é por uma cultura, uma terra, uma história, uma religião, um clube do coração.

Por isso são deslocadas certas manifestações de orgulho e simultânea mitificação das dificuldades que o partido tem vivido. Pelo contrário, cada um no Livre deve perguntar­‑se, a cada momento da sua existência, sobretudo nos momentos difíceis, com distância sobre si mesmo: para quê, em nome de quê dar-se ao trabalho de organizar e manter um partido? E apenas encontrando resposta a estas perguntas além da sua mera subsistência, descer então à realidade dos meios, dos obstáculos e das possibilidades de vencer causas que não o próprio partido.

A ingenuidade que é admirável no Livre não é a do afecto, da amizade e da cumplicidade. Estas são categorias não políticas que colonizam a acção com interesses e poderes pessoais, mesmo se inadvertidamente. A ingenuidade que é admirável no Livre é a de acreditar numa mudança de cultura política, sem prejuízo do pluralismo, da tolerância e, acima de tudo, da capacidade de desprendimento. De outro modo será um instrumento alheio ou um partido menor instrumentalizado na sua menoridade.

O Livre nunca elegeu a figura excessivamente tutelar de Rui Tavares (RT) e com muita certeza menos elegeria qualquer outro membro do Livre. Não porque faltasse capacidade e inteligência política a muitos dos seus membros, mas porque um consenso preguiçoso nos meios do jornalismo e comentário políticos assumia que o partido era um projecto unipessoal de alguém que, no fundamental, pertencia profissionalmente a esse meio.

O insólito é ver agora o “Expresso”, o “DN”, o “Público” a mostrarem rostos que há meia dúzia de anos deviam ter sido visíveis. Ainda bem que o fazem, mas fazem-no agora pelo motivo errado. Não por apreciarem o Livre ou para dizerem que há nele alternativa a JKM, ou a RT. É apenas para dizer que a política neste país não é para JKM. A seriedade do jornalismo deveria começar por questionar os seus critérios, a seriedade do Livre deveria começar por, de peito aberto, não se deixar instrumentalizar por estes ou outros critérios.

Ontem JKM foi comparada no “Expresso” a Isabel dos Santos porque ambas se assumem vítimas de racismo. A jornalista assume que é vitimização sem explicar porquê e assume-o igualmente nos dois casos. E assim dá razão a ambas, mesmo a quem estava de facto a vitimizar-se. O “Expresso” apregoa “liberdade de pensar”. Sim, é uma condição necessária, mas não é suficiente para pensar bem. Além de liberdade de pensar, exige-se pensar com atenção, de forma descomprometida, e com sentido de responsabilidade.

Um Livre lambendo as feridas do seu orgulho, mais preocupado consigo do que com o respeito eleitoral, esquece que o partido sério que quer ser e que se justificaria na história é tão desapegado de si como ligado aos seus compromissos públicos. Em tempos, o Livre foi só uma mensagem de método político trabalhoso, mas poderoso, a produzir urticária em toda a esquerda em redor.

Agora, se não souber estar à altura do momento que vive, será uma caricata ferida narcísica que esquece que cada voto à frente do seu símbolo num boletim de voto teve rosto e palavras, esquece o seu compromisso eleitoral, esquece o entendimento do que é a política.

Assim, sem terceira opção, ou o Livre respeita o compromisso de representação ou perde o respeito político. A começar pelo meu. E continuamos todos amigos porque isso é o que menos vem ao caso. Isto não é uma defesa de JKM, é uma tentativa de salvar o Livre, apontando o seu compromisso com todos nós.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.