O “caso” anda nas bocas do pequeno mundo português: segundo crê o Ministério Público, um técnico de informática do Instituto de Gestão Financeira e Equipamento da Justiça, de seu nome José Silva, terá passado ao Benfica, na pessoa do advogado Paulo Gonçalves, uma série de informações acerca de processos judiciais envolvendo o clube e os rivais Sporting e Porto, a troco de camisolas e bilhetes para assistir a jogos do Benfica. A juntar à festa, a PJ acredita que José Silva será apenas um elemento de uma rede de “toupeiras” do clube da Luz no sistema judicial português.

Como seria de esperar, jornais, rádios e televisões agarram-se à notícia como Marcelo Rebelo de Sousa a uma velhinha a ser filmada, e quase não há dia em que o assunto não seja discutido para além da saciedade e ponto de saturação.

Como também seria de esperar, o foco da atenção mediática é o Benfica: como é que a imagem do Benfica é afectada, quais as consequências para a “reputação” do Benfica (sendo a reputação dos clubes de futebol e dos seus dirigentes a que é, a consequência mais provável será a de toda a gente ver confirmada a percepção que já há muito tem), qual o futuro de Luís Filipe Vieira na presidência do Benfica, como é que a equipa do Benfica reage ou deixa de reagir perante o sucedido, e se o Benfica poderá ou não ser despromovido. Mas, ao contrário do que jornais, rádios e televisões parecem pensar, o Benfica não tem importância nenhuma.

Que ninguém me interprete mal: não acho que, a ser verdade aquilo que o Ministério Público diz que aconteceu, o Benfica e os seus responsáveis envolvidos não devam ser penalizados, ou que aquilo de que se suspeita não é grave. Mas, ao contrário do que a atenção mediática dá a entender, a instituição envolvida neste caso que é realmente importante e relevante para o país não é um clube de futebol, por muitos adeptos que eventualmente tenha. É o sistema judicial.

O que nos devia preocupar neste “caso” não é o que poderá acontecer ao Benfica por ter comprado alguém para lhe revelar segredos de justiça a troco de camisolas e bilhetes ou um emprego para o sobrinho, mas o facto de poder ter havido quem, no seio do sistema de justiça, se tenha vendido em troca de camisolas e bilhetes ou um emprego para o sobrinho. Aliás, tanto a concentração de preocupações no Benfica como a ninharia pela qual o funcionário do sistema judicial se corrompeu mostram bem como a cultura do “pequeno favor”, da “cunha”, da “ajudinha”, do “fazer um jeitinho”, está enraizada no país e no Estado.

A facilidade com que alguém (alegadamente, é sempre preciso dizer para não ofender consciências) se corrompe, e a indiferença com que o país encara essa facilidade, só se excitando em defesa do “clube do coração” ou em ataque ao “rival”, mostram como a corrupção, em Portugal, é encarada com normalidade e amplamente praticada por todos ou quase, do político mais poderoso ao mais insignificante cidadão que tem de resolver um problema “nas Finanças”: quem tenha o número de telefone da pessoa certa, quem seja primo da pessoa no sítio certo, quem possa fazer o favor certo a quem no futuro lhe possa retribuir, “safa-se”. Num país onde a lei impere, “safa-se” quem por habilidade ou sorte presta algum bem aos seus pares. Num país como Portugal, “safa-se” quem, pela sorte ou falta de escrúpulos, consegue traficar eficazmente a influência de que goza.

Razão tinha Vasco Pulido Valente quando, há uns anos, escrevia que “Portugal só ‘funciona’ pela corrupção”: da sua forma “alta”, discutida e lamentada pelas “classes conversadoras”, à sua variante “baixa”, que todos tendemos a tolerar por julgarmos irrelevante, a corrupção é a essência do sistema português, o mecanismo que o acciona, o alicerce que o segura. O problema, implícito nas aspas de Pulido Valente, é que um país que “funciona” pela corrupção é um país que não pode nunca funcionar realmente.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.