A tutela da privacidade dos trabalhadores é objeto de frequente escrutínio: é usual a avaliação judicial da legitimidade de o empregador vedar, restringir ou monitorizar a correspondência pessoal dos trabalhadores, quando trocada através de endereços profissionais; ou a valoração disciplinar de certas publicações, promovidas pelos trabalhadores, em redes sociais; ou ainda o controlo potencialmente exercido pelo empregador, por meio de videovigilância ou GPS.
A tensão não é nova: de um lado, o direito do trabalhador à reserva da vida privada; de um outro, o direito de o empregador dirigir autonomamente a organização de que é titular, conforme as regras que se lhe afigurem mais adequadas – e condicionando, por isso, o uso dos instrumentos de trabalho à execução da atividade profissional e a nada mais.
Sucede que idêntica valoração foi, agora, convocada num contexto distinto: tendo em vista identificar falhas no serviço prestado a clientes de determinado estabelecimento hoteleiro, o empregador contratou uma empresa que deveria avaliar a qualidade dos serviços executados. Conforme o acordado, a empresa promoveu visitas presenciais, através de “clientes mistério”: os “clientes” deslocavam-se ao estabelecimento e escrutinavam o desempenho profissional dos trabalhadores. Nos estabelecimentos de restauração, o “cliente mistério” procedia ainda ao pagamento dos consumos, confirmando se a fatura era emitida e, em caso de pagamento em numerário, se o troco era prontamente entregue. Eram, pois, visitas encenadas, com o propósito de avaliar a conduta dos trabalhadores.
Sucede que, em duas destas visitas, foi apurado que dado trabalhador, embora recebendo pagamentos em numerário, não efetuava os respetivos registos informáticos, não emitindo fatura, nem realizando os correspondentes depósitos em caixa. Em suma, o trabalhador apropriava-se dos quantitativos pagos. Perante a prova testemunhal assim produzida – precisamente por meio de “clientes mistério” – o empregador instaurou um processo disciplinar ao trabalhador, que redundaria no seu despedimento.
O trabalhador viria, no entanto, a impugnar judicialmente a licitude de um tal despedimento, invocando que a prova produzida por recurso a tais “clientes mistério” não poderia ser considerada, já que ilicitamente obtida. Tratar-se-ia, no seu entender, de um mecanismo dissimulado e enganoso de obtenção de prova.
Divergindo desta leitura, a Relação de Lisboa viria, todavia, a assinalar que os “clientes mistério” limitam-se a observar os trabalhadores na perspectiva do cliente – sendo, pois, “clientes qualificados”, especialmente treinados para a deteção de falhas na prestação dos serviços.
Acresce que, nesta hipótese, o comportamento em causa era captável por todos os que frequentassem o estabelecimento, não sendo, por isso, razoável invocar qualquer prejuízo para a esfera privada: a atividade dos “clientes mistério” seria, afinal, sobreponível ao comportamento de um qualquer outro cliente. De diferente, teriam apenas a incumbência de promoverem uma avaliação cuidada do serviço ali prestado.
Estamos perante uma decisão relevante, atento o recurso crescente a modelos de avaliação semelhantes, replicáveis em múltiplos setores de atividade, sempre que aos trabalhadores seja reconhecida maior autonomia no desempenho profissional – nessas circunstâncias, será, afinal, menos provável o exercício de um controlo direto e imediato, por parte da hierarquia.