Vinha eu no carro a regressar ao escritório quando comecei a ouvir um daqueles fóruns de opinião tão comuns nas manhãs da rádio e da televisão. O tema do dia não podia ser outro que não a dita Operação Lex, tão mediatizada que foi ao longo de todo o dia de ontem.
Tive a oportunidade de ouvir a Senhora Presidente da Direção Nacional da Associação Sindical dos Juízes Portugueses num rigoroso cumprimento das normas estatutárias que a impedem, enquanto juíza, de fazer declarações sobre quaisquer processos. Na altura em que liguei o rádio estava a apresentar a sua opinião sobre o segredo de justiça e as violações flagrantes de que o mesmo é alvo constante.
Salientou a meu ver uma questão muito pertinente, cuja opinião partilho e que aqui reproduzo do seguinte modo: se não houvesse a procura que há pelos factos protegidos pelo segredo, provavelmente não haveria também a oferta que há desses mesmos factos. É o mercado a funcionar – digo eu.
Houve um momento em que, no entanto, a sua opinião me causou franca preocupação, tanto mais que foi assim que terminou o seu tempo de opinião naquele fórum: se bem compreendi as suas palavras, não se punia a violação do segredo de justiça porque não havia maneira de saber quem prevaricou.
Não posso sentir outra coisa que não preocupação quando ouço um juiz em 2018 ter uma visão do crime em causa que há muito deveria ter sido abandonada. A opinião pública não pode ficar com a ideia – errada, muito errada mesmo – que só comete o crime de violação de segredo de justiça aquele que, dentro do processo, entrega a outro, fora do processo, os elementos protegidos pelo segredo. O jornalista que apresenta factos sujeitos a segredo de justiça, mesmo que não tenha tido contacto com o processo, também pratica o crime.
Como o trânsito é amigo nestas ocasiões, ainda antes de chegar ao escritório tive oportunidade de também ouvir o Presidente da Direção Nacional do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público. Sem também se pronunciar sobre processos concretos, sustentou que a culpa da violação do segredo não podia ser dos magistrados do MP, sinalizando que muitos processos onde o segredo é violado dizem respeito a diligências onde estão presentes centenas de elementos da PJ e um ou outro magistrado do MP, pelo que, nas palavras do próprio, seria óbvio que o segredo não era violado pelo MP, “como toda a gente sabe”.
Bom, eu não sei se quem viola o segredo de justiça nos processos de que falava é alguém da PJ, se alguém do MP ou algum colega meu. Mas sei que do ponto de vista funcional a PJ depende do MP no âmbito da investigação criminal, como sei que a ação penal é exercida e titulada em Portugal pelo mesmo MP.
Ainda há pouco tempo ouvi o mesmo magistrado – que não é por ser sindicalista que deixará seguramente de ser magistrado – atirar culpas para cima da alegada falta de formação dos funcionários judiciais que trabalham nas secretarias dos tribunais e dos serviços do MP, quando foi noticiado o caso da comprovada deficiente (para não dizer muito pior, o que era merecido) condução de um inquérito que culminou na morte de uma mulher, vítima de violência doméstica, no preciso dia que regressava a casa vinda dos serviços do MP.
Hoje, e apesar de a PJ depender funcionalmente do MP na investigação criminal, que é da sua exclusiva responsabilidade, volta a assobiar para o lado.
Impede-me a lei também a mim de discutir publicamente sobre questões profissionais pendentes. Então ainda bem que aquilo de que falarei agora já findou (ainda que mal) há algum tempo.
Num processo mediático que venho acompanhando desde março de 2015, o meu cliente foi sujeito à medida de coação de prisão preventiva nessa altura, tendo a mesma sido substituída pela (vulgarmente chamada) prisão domiciliária em junho desse ano e na sequência de um interrogatório complementar realizado perante o juiz de instrução criminal, dois procuradores do MP, eu e um colega de escritório, uma funcionária judicial e o meu cliente. O inquérito estava em segredo de justiça, coisa que qualquer um – dentro ou fora do processo – sabia desde março.
No dia seguinte à alteração da medida de coação do meu cliente, um órgão de comunicação social apresenta a todos quanto os que quisessem saber um conjunto de factos alegadamente passados naquele interrogatório, dando inclusivamente capa a isso mesmo.
Eu e o meu colega apresentamos a devida participação criminal em reação à evidente violação do segredo de justiça, participação essa que foi recebida pelo MP. Passado algum tempo, e apesar de expressamente ter pedido que nos viesse a ser dada informação sobre o seguimento dado à participação apresentada, viemos a saber que a investigação tinha sido conduzida e, para surpresa minha, terminada. Sem que fosse interrogada uma única das pessoas presentes no interrogatório revelado, concluiu o MP que não era possível identificar o(s) agente(s) do crime. E assim arquivou.
Naturalmente, logo que me apercebi disto, fui junto do juiz das liberdades invocar a nulidade do inquérito, pelas mais diversas razões. A senhora juíza, no entanto e em suma, considerou não haver qualquer nulidade, não deixando ainda de sustentar – seguindo o entendimento do MP – que em processos relacionados com a violação do segredo de justiça, os particulares não têm legitimidade para se constituírem como assistentes. Como esta decisão era, na minha ótica, contrária à lei e, inclusivamente, às correntes jurisprudenciais mais atuais, dela interpus o devido recurso.
Quer a Relação quer a senhora juíza tinham bem presentes quem foi ouvido, e quem não foi, na investigação arquivada. Para infortúnio do meu cliente – mas também meu, enquanto operador da justiça realmente interessado na sua realização – a Relação secundou o entendimento da primeira instância: mesmo que um cidadão veja o seu nome enlameado na praça pública por causa da violação do segredo de justiça, isso não interessa para nada e não se pode constituir como assistente nos inquéritos criminais.
Para azar de muitos arguidos – conceito confundido por muitos com o de condenado – vivemos num sistema onde também a maioria dos juízes e procuradores entendem, em nome de uma interpretação literal – do mais literal já visto – de um artigo do Código de Processo Penal, não estar vedada aos jornalistas a possibilidade de se constituírem como assistentes em inquéritos criminais, mesmo que nada tenham que ver com o caso em investigação e mesmo que, objetivamente, em nada possam contribuir para a atuação do MP na descoberta da verdade. Legitimada assim fica a devassa e a violação do segredo.
É muito menos difícil do que alguns dizem encontrar os culpados pela violação do segredo de justiça. E já que se muda o Código para tudo e mais alguma coisa, talvez não fosse má ideia passar a incluir este crime no catálogo daqueles pelos quais podem ser responsabilizadas pessoas coletivas, assim permitindo responsabilizar outros que não os concretos jornalistas autores das peças violadoras do segredo.
Se há magistrados, mais ou menos hipócritas, mais ou menos competentes, que não querem ou não combatem a violação do segredo de justiça, ao menos permita-se àqueles que se veem realmente prejudicados pela sua prática contribuir para esse combate. Mesmo que apenas para sugerir o óbvio, como é o interrogatório daqueles entre os quais, muito possivelmente, estará o prevaricador inicial. No meu caso, infelizmente, eu e todos os demais, mais do que presumíveis inocentes, fomos tidos como certamente inocentes, única razão que encontro para ninguém ter sido interrogado. O meu cliente, infelizmente também, já era certamente culpado, ainda nem a investigação tinha terminado.