Aos 67 anos, o antigo primeiro-ministro António Guterres – considerado a personalidade do ano 2016 – prepara-se para cumprir o mais difícil desafio da sua vida: comandar os destinos da ONU, uma assembleia planetária (tem 193 países ‘inscritos’) cujas resoluções muitos dos seus membros tendencialmente ignoram, mas de quem depende a vida e a morte dos mais desfavorecidos, dos mais desafortunados, dos mais infelizes de nós. Católico praticante – o que várias vezes o colocou em posições muito desconfortáveis no interior do seu próprio partido, o PS (a despenalização do aborto terá sido o caso mais evidente) –, o novo secretário-geral da ONU tem na sua frente, a partir de 1 de janeiro, uma agenda sobrecarregada.
Desde logo, a questão da guerra na Síria – que envolve um dos cinco países com lugar permanente no Conselho de Segurança da ONU (a Rússia), o que só por si transforma qualquer questão num dossiê de grande melindre e de muito difícil solução. Pior ainda, a montante da guerra na Síria, Guterres tem em mãos o tremendo problema dos refugiados e dos deslocados de guerra – que a Síria produziu aos milhões nos últimos cinco anos. É uma questão que colocará Guterres em confronto direto com vários países da Europa – dado que a ONU está claramente contra a forma como o continente lidou com o fluxo de refugiados que, pelos Balcãs, pelo Mediterrâneo ou até mesmo pelo norte da Europa, quando o corredor dos Balcãs foi fechado, tentava colocar-se a salvo do fogo cruzado entre o Daesh e Bashar al-Assad. O próprio acordo entre a Europa e a Turquia – que envolvia o pagamento de quantias generosas para que os refugiados nunca chegassem à Europa e a livre entrada de turcos nos países europeus, e que verdadeiramente ninguém sabe se ainda está ou não no ativo – foi considerado pela ONU de um insuportável cinismo.
Os últimos dias do ano deram a entender, por outro lado, que o conflito entre Israel e a Palestina – que se encontrava mais ou menos em ‘hibernação’ desde que o primeiro-ministro israelita inviabilizou os esforços de paz do governo de François Hollande – está a regressar ao ponto de onde nunca verdadeiramente chegou a sair nos últimos 60 anos: ao estado de guerra mais ou menos declarada.
E estes são apenas dois conflitos ‘maiores’ entre as dezenas de geografias – principalmente em África –, onde não há dia em que os tiroteios não se façam ouvir e o chão não se cubra de sangue. São conflitos escondidos – muitos deles por razões religiosas – e que o mundo ocidental tenta manter debaixo do tapete: ainda há poucas semanas, uma delegação da União Europeia esteve reunida com representantes dos países ACP (África, Caraíbas, Pacífico), para os convencer da necessidade de os deslocados das guerras se manterem nos países limítrofes para poderem regressar aos locais de origem o mais brevemente possível – ao invés de engrossarem o contingente de subsarianos que todos os meses perdem a vida nas águas medonhas do Mediterrâneo.
Politiquices…
Como se não lhe bastasse já a agenda que tem pela frente (e esta é a óbvia), António Guterres tem ainda de promover a reorganização – um substantivo alternativo a um outro mais correto: a credibilização – da própria ONU. A organização não pode continuar a colecionar fracassos atrás de fracassos e a atirar para as geografias mais violentas uma série de tropas que, por usarem capacetes indisfarçavelmente azuis, ninguém se lembra de respeitar. Como também não pode ser suspeita de envolvimento em áreas pouco claras – no que, mais uma vez, os capacetes azuis ficam debaixo dos focos.
Só para complicar ainda mais, Guterres terá que se haver com… Angela Merkel. A Alemanha está claramente interessada em passar a ser membro permanente do Conselho de Segurança – não reconhecendo à França peso suficiente para ser o único representante da União Europeia no conjunto – e prepara-se para lançar sobre a ONU todo o seu arsenal diplomático. A única coisa difícil de explicar é como é que havia tanta gente a querer ser secretário-geral das Nações Unidas…
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