Falamos de pós-verdade, mas, por detrás do que se diz, que significado tem uma palavra que se tornou tão ubíqua? Muitas vezes a palavra nova hegemónica em vez de responder, na verdade, cala a pergunta. A maneira como se nomeia é aqui já um ponto de vista, que mais depressa pode contribuir para um juízo de legitimação conformada do que para uma apresentação do problema.
A mudança tem sido notada entre aqueles que, de forma mais presente no espaço público, especialmente políticos, evocam factos mais pelo seu poder de persuasão do que pelo que possam ter de verdade. Depressa apontamos Trump, claro, a quem devemos, sem grande exagero, o mais impressionante processo de banalização da mentira na história da representação política democrática – ainda que não faltem antecedentes em regimes políticos que tiveram como ponto comum, no mínimo, a rejeição da democracia. A diferença é que a coisa já não se coloca, como no passado, em termos de manipulação e usurpação da verdade por quem detém o monopólio do poder. O que se verifica hoje é a condescendência com a mentira e, na medida inversa, a verdade em perda do seu valor facial. Aqui se joga, de forma preocupante, o valor da própria democracia.
É preciso reconhecer que o problema não se resume a juízos sobre o carácter político desta ou daquela figura. Donald Trump está bem acompanhado. Por exemplo, é claro que Boris Johnson mentiu na campanha do Brexit. A prática da inverdade é uma antiquíssima arte de subtilezas que vai muito além da mentira, todo um jogo de luzes e sombras, de meias-verdades, omissões, ênfases, tão velha quanto a política. Mas o que não é novo aqui não pode mascarar, a menos que por reiterado artifício de pós-verdade, aquilo que é novo: a maneira como nos relacionamos com a verdade mudou. E se mudou, importa saber como e porquê.
Desde logo esta transformação da relação com a verdade tem de ser pensada mais radicalmente, envolvendo-nos de forma mais generalizada no espaço público. Não é apenas a relação difícil de Trump e outros que tais com a verdade, mas aquilo que tornou possível o que antes era altamente improvável: a existência política de Trump e companheiros deste tempo. As maneiras de nos relacionarmos com a verdade estão a mudar porque a realidade que habitamos mudou tanto que a própria possibilidade de falar verdade acerca dela mudou de significado.
A existência mediática contemporânea, cada vez mais imersiva e universal, transforma a percepção do referente real dos nossos discursos presumivelmente verdadeiros. Hoje e doravante, para a cultura de massas conformada a este modo de existência, o real é cada vez mais composto por representações sobre o próprio real, crenças materializadas em media estáveis que enquadram e preenchem o quotidiano dos indivíduos e lhes convocam empenhos, posicionamentos, activismos, o próprio sentido de acção no mundo. Numa realidade que, mediatizando-se, deixou de ser imune às crenças sobre a própria realidade, a relação com a verdade deixa de ser imune à persuasão. O preço de um mundo mais humano, cada vez mais exclusivamente humano, é um mundo cada vez mais indiferente à diferença entre realidade e sua representação, entre verdade e persuasão.
É cada vez mais um mundo faz de conta, que convém a uma democracia teatralizada, espectáculo encenado que deixa a realidade com consequências nos bastidores invisíveis à decisão colectiva, algo a que em ciência política se passou a chamar pós-democracia. É só meia coincidência que os livros Post-Democracy, de Colin Crouch, e The Post-Truth Era, de Ralph Keyes, sejam ambos de 2004 e colem o mesmo prefixo “pós” à verdade e à democracia. Uma e outra não podiam estar mais destinadas ao mesmo fim, seja continuando seja dando lugar a outra coisa que não se adivinha boa.
Apesar da imersão social mediática generalizada, nem todo o real perdeu a imunidade à crença. Mas esse outro real fica longínquo daquele quotidiano em que intervimos, fiados nas nossas ilusões de autonomia. Seja o mundo natural, que se reserva derradeiramente contra o burburinho humano, seja também a decisão com verdadeiro impacto sobre as condições económicas das nossas vidas, cada vez mais uma decisão à margem do centro de legitimação democrática, seja ainda a tecnologia que, produzindo e reproduzindo-se, nos vai subtraindo do processo produtivo.
Porque o futuro que reservarmos à verdade é o futuro que reservamos à democracia, é preciso restaurar os direitos da verdade, como os da democracia, entre si indissociáveis. Mas é também preciso, não abdicando da ideia de verdade, pensar uma transformação há muito em curso e que não pode ser ignorada.
Esta transformação da relação com a verdade num quadro de existência mediática generalizada justifica trazer à discussão o que, na filosofia, se chama “teorias da justificação da verdade”. Há várias e não pretendem dizer o que é verdade, mas apenas o que é a sua justificação. Não são teorias da verdade porque não é possível definir verdade sem pressupor logo uma determinada ideia de verdade para que uma sua definição se pudesse dizer… verdadeira. Por isso, alguns filósofos dizem que “verdade” é uma noção primitiva, no sentido que não conseguimos reconduzi-la a uma noção mais simples, como por exemplo quem reconduz a multiplicação à adição.
Ainda assim, é possível formular boas teorias da justificação da verdade. A mais clássica é a teoria da correspondência, de acordo com a qual uma afirmação é verdadeira se corresponder à realidade. Mas, e se a realidade não for imune ao que dela afirmamos, se essa dependência for um facto cada vez mais constante das realidades em que existimos? É boa razão para chamar à colação uma teoria coerentista da justificação da verdade. O coerentismo deixa cair a presunção de independência da realidade face às nossas afirmações acerca dela, aceita que o acesso à realidade se faz mediante crenças e que entre estas são justificadas como verdadeiras as que integram um sistema coerente, partilhado, de crenças. Aqui, o Outro real é colocado a uma maior distância, mas não extinto. Como defendeu há umas boas décadas o filósofo australiano Donald Davidson, a coerência engendra correspondência. Não fosse assim e não sobreviveríamos. Obrigarmo-nos à coerência argumentativa é um dever que nos salva do “crentismo” que se instalou – de que o fundamentalismo é apenas uma versão pelo avesso – e que deixa incerto o futuro da democracia.
Não perder esta ligação entre coerência e correspondência, restaurá-la é uma tarefa ética, mas, mais fundamentalmente, é uma tarefa ecológica que tem de ser ganha democraticamente. Religa-nos ao mundo.