Lisboa foi a cidade escolhida para o 17º Congresso Internacional do Rendimento Básico Incondicional que juntou centenas de pessoas de todo o mundo em torno de dezenas de painéis sobre esta temática no final de setembro. Foi um momento importante de procura de alternativas para muitos problemas do mundo atual e, por isso, é uma iniciativa a saudar. Assim, dedico-lhe um texto mais longo do que o habitual, pedindo a quem lê estas linhas um pouco mais de paciência.
O Rendimento Básico Incondicional (RBI) é uma ideia antiga que tem voltado a ter importância nos últimos anos. A premissa é simples: e se cada pessoa tivesse direito a um rendimento monetário pelo simples facto de existir?
Os defensores da ideia dizem-nos que um rendimento desse tipo permitiria a redução da pobreza e das desigualdades sociais, valorizando simultaneamente muitas atividades que não são consideradas trabalho, como as artes ou o envolvimento social. Para além disso, os promotores do RBI acreditam que a maioria das pessoas não deixaria de trabalhar, ainda que não precisasse de trabalhar para receber um rendimento.
É uma ideia controversa e é sempre debatida apaixonadamente pelos seus promotores. E não se pense que não temos de encontrar soluções para os problemas levantados pela tecnologia e pela globalização, mas creio que o caminho não é o RBI e por isso apresento quatro objeções para debate.
1. Desistir do pleno emprego é desistir do direito ao trabalho
Para cada vez mais pessoas no mundo e para quase todas as pessoas que conhecemos, o trabalho é a única maneira que temos de subsistir. Aliás, a correlação entre desemprego e pobreza é nítida em todos os estudos (em Portugal quem não tem emprego tem um risco de pobreza de mais 30 pontos percentuais face a quem tem emprego). Porque a maioria da população não subsiste sem trabalho os movimentos dos trabalhadores sempre se bateram pelo direito ao trabalho, ou seja, pela garantia de que todos têm o direito a trabalhar e que ninguém fica sem meios de subsistência. Em Portugal a Constituição enuncia que é função do Estado garantir esse direito e que o Estado tem de garantir o pleno emprego. Da garantia do pleno emprego temos a justificação para o subsídio de desemprego, para as políticas de formação profissional, para os diversos apoios a quem não tem emprego.
Os promotores do RBI dizem que não devemos querer o pleno emprego e que isso seria substituído por um rendimento para todos. Mas se quebrarmos a relação entre rendimento e trabalho quebramos a relação entre trabalho e direito ao trabalho. Ou seja, ficamos nas mãos de um Estado benevolente que mantenha aquele rendimento.
Alguém está hoje disposto a trocar um terço do seu salário direto por um rendimento do mesmo valor atribuído pelo Estado? O que os anos da troika nos ensinaram é que o salário indireto (os serviços ou rendimento fornecidos pelo Estado) é sempre o alvo mais fácil. Defender o salário direto continua a ser a nossa melhor garantia numa economia movida pela desigualdade e exploração.
Se é possível que por receber um rendimento fixo a maioria das pessoas não deixasse de trabalhar, porque o trabalho para além de nos dar rendimento também tem uma forte função de integração social, desistir do direito ao trabalho é desistir do laço de solidariedade que permitiu a maioria dos avanços sociais que conhecemos, como as oito horas de trabalho, os direitos do trabalho ou o Estado social.
2. A forma pura do Rendimento Básico Incondicional é o fim do Estado social
A forma original e liberal do RBI é simples: cada cidadão recebe uma quantia em dinheiro, mas em troca não há serviço nacional de saúde, escolas públicas ou mesmo pensões. Recebe-se um cheque e com esse valor cada pessoa trata da sua própria saúde, da escola dos filhos e da sua velhice. Creio que nenhuma pessoa faria essa escolha, visto que todos sabem que, apesar de estar aquém do que gostaríamos, não seria com 500 euros dados por mês pelo Estado que poderíamos encontrar uma escola para as crianças e tratar dos nossos problemas de saúde. Quem tem um filho na creche sabe que facilmente custa mais de 400 euros.
Mas não pensemos que esta proposta está muito longe da realidade portuguesa, porque ainda recentemente Passos Coelho defendia um cheque-ensino, ou seja, a atribuição de um valor a todas as crianças para que os pais pudessem decidir a escola do filho ao invés da criança frequentar a escola pública. E Pedro Duarte, ex-líder da JSD e diretor de campanha de Marcelo Rebelo de Sousa às presidenciais, defendeu na passada terça-feira que o PSD devia ter uma nova agenda ideológica alicerçada no RBI.
O RBI na forma pura é um autêntico cheque-tudo, cheque-vida, e, logo, é incompatível com o Estado social.
3. Rendimento Básico Incondicional à portuguesa
O RBI liberal é inconciliável com a Constituição portuguesa e na verdade não há nenhuma pessoa ou organização em Portugal que defenda a instituição de um RBI desse tipo. Assim, os defensores da medida no nosso país, nomeadamente os partidos PAN e Livre, defendem a manutenção do serviço nacional de saúde, da escola pública e de todos os apoios sociais acima do valor do RBI para além da atribuição desse valor a todas as pessoas.
O problema dessa solução é que seria necessário ter muito dinheiro para a instituir. Vejamos as contas.
Se o Estado atribuísse um RBI de 300 euros – um valor abaixo da linha de pobreza – por cada pessoa, todos os meses, gastaríamos cerca de 21,6% do PIB com a medida. Se tentássemos ter um RBI perto dos 420 euros para garantir que ninguém em Portugal era pobre então o custo da medida era de 27,3% do PIB.
Para podermos comparar, o Estado português arrecada cerca de 22% do PIB em impostos todos os anos e com isso para além de pagar o serviço nacional de saúde, a escola pública e pensões, paga as estradas, as forças armadas, os tribunais, a polícia, a proteção civil, os esgotos, a iluminação pública, etc.
Assim, a solução do RBI à portuguesa implicaria que o Estado teria de cobrar mais do dobro dos impostos que arrecada hoje. Até hoje ainda não vi ninguém defender uma carga fiscal de 50% do PIB, mas isso seria o necessário para financiar a medida tal como é apresentada.
Para além disso, o Estado social português, com todas as suas dificuldades, é extremamente eficaz no combate à pobreza: as despesas sociais, que custam 8,8% do PIB, conseguem baixar a pobreza de 47,8% para 19,5%. Ou seja, o RBI é caro e parece ser menos eficaz no combate à pobreza do que o Estado social.
4. O Rendimento Básico Incondicional é uma solução de mercado, não de liberdade
Porque a ideia é oferecer dinheiro a cada pessoa, o RBI necessariamente expõe mais as pessoas ao mercado. Na verdade é andar para trás, porque o que o Estado social nos trouxe de novo foi a desmercadorização de coisas essenciais na vida das pessoas, como a saúde ou a educação.
Muitos dos que defendem que o RBI é uma boa solução, dizem que com o rendimento fixo as pessoas serão mais livres porque poderão escolher o que comprar. No entanto, este argumento confunde mercado com liberdade. Decidir o que comprar não é liberdade, liberdade é decidirmos em conjunto, em democracia, como decidimos gastar a riqueza que produzimos enquanto sociedade.
Ou seja, liberdade é decidirmos em conjunto se achamos razoável que os ganhos de produtividade que a tecnologia nos poderá trazer deviam servir para podermos baixar o número de horas que trabalhamos sem reduzir salários a fim de dividir melhor a riqueza criada pelo trabalho, ou se achamos que para além do direito à saúde, à educação e à reforma as pessoas podem ter direito efetivo a transportes decentes ou a habitação condigna. Direitos e não dinheiros.
Para além disso, por ser uma solução em que o mercado regula tudo, o RBI não altera a forma de produção, aliás é produtivista, favorecendo o consumo. Assim, agora que sabemos que existe uma crise ecológica e que as alterações climáticas são causadas pelo modo como produzimos, o RBI é um incentivo para a manutenção desse modo de produção.
Tudo somado parece-me que o Rendimento Básico Incondicional é uma ideia meritória que falha por não ser capaz de responder aos desafios do trabalho, das sociedades e do planeta que enfrentamos no presente e no futuro.