“Vivemos numa economia superstar em que indivíduos de topo, empresas e até regiões geográficas comandam poder, riqueza e atenção gigantescos e desproporcionados”, escreveu Rana Foroohar no Financial Times no domingo. As regiões a que a colunista se referia são regiões dos EUA: há cada vez maior concentração desses poderes em cidades com Nova Iorque (pop. 8.538 milhões) ou regiões como a Califórnia (pop. 39.250 milhões).
Portugal tem a área do Estado do Ohio (94.322 kms2) e a população do Michigan (9.928 milhões). O PIB do Ohio (466 mil de milhões de USD) coloca-o em 28º lugar na lista dos 50 estados americanos e o do Michigan (PIB 382 mil milhões de USD) em 36º. No que respeita ao PIB per capita, não contando com o District of Columbia, Massachussets está em primeiro lugar apresentando 65 mil USD, apenas um pouco mais que Nova Iorque. A Califórnia tem cerca de 59 mil USD per capita. Há muito pior. O Mississipi com 35 mil USD per capita, 72% da media nacional, tem mesmo assim um PIB per capita superior aos 30 mil USD de Portugal. Se fôssemos um estado americano só não estaríamos em último lugar porque Porto Rico é ainda ligeiramente mais pobre, com 29 mil USD per capita.
Portugal é este pequeno e remediado país, que tal como muitos outros países ou regiões, incluindo dos EUA, será cada vez mais marginalizado pela concentração de poder em alguns países e algumas empresas, dos EUA, da China ou de outros. Nos EUA, provavelmente, os reguladores de mercado irão intervir e quebrar este desmesurado poder que se estende por todo mundo, mas creio que isso só ocorrerá quando os interesses nacionais dos próprios EUA forem seriamente ameaçados por esse poder tantas vezes concentrado em indivíduos.
Nas palavras do Presidente da República Portuguesa, na mensagem de Ano Novo, Portugal precisa de ser reinventado. O Presidente referia-se às tragédias do verão de 2017 e à “reinvenção da confiança dos portugueses na sua segurança, que é mais do que estabilidade governativa, finanças sãs, emprego crescente, rendimentos. É ter a certeza de que, nos momentos críticos, as missões essenciais do Estado não falham nem se isentam de responsabilidades.”
A segurança dos cidadãos é um dever básico dos Estados, democráticos e sociais, e nesse sentido, no verão de 2017, o Estado português não cumpriu e ficou ao nível daqueles regimes para quem a vida humana pouco ou nada vale. Para o Presidente, a vida dos portugueses nos “portugais esquecidos” vale tanto como a de todos os outros pelo que é preciso exercer o poder executivo para eliminar as desigualdades territoriais, pelo menos no que diz respeito à segurança dos cidadãos.
Vários dos comentários de líderes de opinião convidados pelo Diário de Notícias para interpretar as palavras do Presidente puseram o foco na reinvenção do Estado – e não de Portugal. O Estado será o grande problema e o grande obstáculo à “reinvenção de Portugal”. O cineasta António-Pedro Vasconcelos considera que Portugal não pode nem precisa de ser reinventado, porque a grande reinvenção de que precisamos é de um Estado que faça o que é importante.
A mesma opinião foi expressa por Eduardo Lourenço, filósofo: “Precisamos de um Estado mais competente para suscitar uma melhor sociedade.” E por Guilherme Figueiredo, Bastonário da Ordem Advogados: “O pior é o serviço prestado à maioria dos cidadãos pelo Estado.” E ainda por Manuel Aires Mateus, arquiteto: “É fundamental reinventar o Estado de direito democrático social para […] a sustentabilidade económica do país.” “Concordo com a mensagem [do Presidente] no sentido em que reinventar é fazer certas reformas” disse Raquel Varela, historiadora.
Não vamos certamente querer reescrever a história de Portugal, inventada e embelezada pelos propagandistas ao serviço do Estado, desde Afonso Henriques. A verdadeira história está repleta de crueldade, racismo e ganância, desde o mercador de escravos Infante D. Henrique, que traiu seu irmão Fernando. Foi preciso muita espada e muita pólvora. Não vamos deitar abaixo o monumento às Descobertas, a Torre de Belém e os Jerónimos. Todavia, essa história verdadeira deve ser conhecida, como alguns historiadores se esforçam por fazer. Mas será que a verdadeira história ajudará o presente a construir o futuro? Na verdade, certos episódios da história embelezada têm elevado valor comercial e, se devidamente expurgados das partes más, são únicos e úteis para contar aos estrangeiros.
Outros comentários dizem que as palavras do Presidente estão imbuídas de um certo “fetichismo”, como considerou Maria João Valente Rosa, demógrafa, que acrescenta: “Um país tão antigo como o nosso não precisa de ser reinventado”. Também o filósofo José Gil tinha encontrado, num ensaio no Público, um tom “quase messiânico” nas palavras do Presidente.
Mas a nossa antiguidade vem carregada de defeitos, diz a cientista Maria Manuela Mota, que se refletem na qualidade do Estado: “Temos defeitos ancestrais como a pobreza endémica, empresários dependentes do Estado, Estado omnipotente, fatalidade em relação às desgraças, até à falta de pontualidade. O que me custa mais é a sensação de que pagamos impostos para um Estado que não dá segurança ou no que diz respeito à vida dos portugueses.”
Os estudos do World Values Survey são claros sobre o que é preciso mudar nos valores, crenças, atitudes e comportamentos dos portugueses. Repare-se na opinião de quem vive entre nós há algum tempo. Um site para expatriados franceses em Lisboa entrevistou alguns alunos Erasmus de diversos países.
A opinião de muitos é que os portugueses são lentos, desatentos, desorganizados e incumpridores. Lorenzo, estudante italiano de informática: “Os estudantes [portugueses] falam muito durante as aulas.” Nicolas, estudante belga de jornalismo: ”Os portugueses não se sabem organizar. Mas são super calorosos!” Yuki, estudante japonesa de português: “O ritmo é muito mais lento.” Roxanne, estudante francesa de comunicação: “Tive dificuldade em adaptar-me ao ritmo lento de Portugal”. Voilà! E o que eles dizem está nas redes. Não basta ser chaleureux.
Os portugueses têm de ser persuadidos que esta maneira de ser não vai longe. É preciso adaptar o nosso modo de funcionar em sociedade a outros conceitos, atitudes e comportamentos para termos mais sucesso. Mais do que reinventar, precisamos de reimaginar em permanência Portugal no contexto global a longo prazo, como muito bem disse a atriz Margarida Marinho ao DN: “Devemos pensar de forma global no que queremos para o país daqui a 20 ou 30 anos e estar sempre a fazer esse exercício.” Já que não podemos reinventar o passado, podemos inventar um futuro de progresso, convergência e solidariedade. E isso começa pelo topo – pelos políticos. O problema é que os políticos se confundiram com o Estado desacreditado e perderam credibilidade, com raras exceções. São precisos novos agentes da mudança.
Hoje precisamos de heróis atuais: os homens e as mulheres do trabalho, independentes do Estado e dos políticos, com capacidade, firmeza e conhecimento para propor e defender políticas económicas. Precisamos de empreendedores, empresários, acionistas, trabalhadores que constroem empresas de classe mundial, que se focam na manufatura das coisas que sabemos fazer bem, cada vez melhor, e que outros querem comprar, por exemplo em setores como a metalurgia e metalomecânica, o maior setor exportador nacional. Sem ilusões nem manias de grandeza imperial. Já bastam os britânicos.
Segundo a lenda, no tempo de Alexandre o Grande, quem desatasse o nódio górdio que prendia a carroça de um pobre camponês a uma coluna de pedra tornar-se-ia rei da Ásia. Quando, em 333 (AC), Alexandre chegou a Gordium, tentou desatar o nó. Não o conseguindo, cortou-o em dois pedaços com a sua espada. Esta ficou conhecida como a “solução alexandrina”. E Alexandre tornou-se rei da Ásia (quase). Os portugueses têm de cortar o nó górdio que os prende à imobilidade, têm de ser mais rápidos, menos calorosos e mais determinados, e exigir aos políticos a transformação ou reestruturação do Estado numa organização eficiente e eficaz ao serviço de quem a paga. Não resolveria tudo, mas era um grande começo.