Um dos espetáculos mais tristes a que me vi compelido a assistir foi um jogo de futebol entre crianças dos 9 aos 11 anos, a contar para um campeonato qualquer – ou talvez não, talvez fosse só um jogo amigável.
O espetáculo produzido dentro do campo – se é que se pode chamar espetáculo a um grupo de 22 crianças (talvez fossem menos, umas 14 ou 16) a correr desalmadas atrás de uma bola – seguiu o figurino que se podia esperar: uma sucessão mais ou menos tola mas provável de mimetismos dos jogos que ocupam parte substancial do tempo de antena das televisões, com quedas aparatosas, simulações de faltas, gritaria avulsa entre adversários e entre colegas da mesma equipa, gestos exagerados e correrias desenfreadas pelo campo todo quando alguma das crianças marcava um golo, num emaranhado de abraços, palmadas vigorosas e camisolas atiradas para o chão.
O melhor estava guardado para o fim: quando o jogo acabou, as crianças reuniram-se junto à multidão (não muito grande) de adeptos e entoaram uma coreografia qualquer, entre palmas que iam ganhado ritmo até desembocarem num grito final, devidamente animalesco, daqueles que servem para soltar fúrias ou assuntar fantasmas.
Mas era do outro lado da vedação, junto à tal multidão (composta, suponho, na sua esmagadora maioria por pais e mães dos atletas) que a tristeza do espetáculo ganhava a sua forma mais elaborada: a progenitora passou o tempo infindo que o jogo demorou a insultar. Estes insultos tinham como destinatários três grupos distintos de protagonistas do jogo: as crianças da equipa adversária; o árbitro (por acaso era uma); e, espanto dos espantos, as crianças da própria equipa, mais particularmente os próprios filhos.
De facto, não foi apenas uma vez, nem duas, nem sete, nem oito, que alguns pais (as mães abstiveram-se), possivelmente com a nobre esperança de incitar o filho à superação, proferiram frases que por decoro não se reproduzem, mas que o leitor intuirá. Percebe-se: o que está em causa para a maioria daqueles pais, os que insultavam, não é a felicidade do filho ou o seu crescimento físico e social, mas apenas a crença de que num país onde nasce um Ronaldo podem muito bem nascer dois ou três, ou mesmo dez ou vinte – sendo que o que é preciso é ter esperança e saber encaminhar os destinos desde a mais tenra idade, nem que seja, e nunca fizeram mal a ninguém, à bofetada e insultando a pobre mãe, mesmo que ela não exerça.
Diz-me quem comigo assistia que não poucas vezes esta festa à volta das quatro linhas acaba em pancadaria geral entre pais de futuros Ronaldos mas de equipas contrárias, o que pode ser considerado normal dado o muito amor paternal que entretanto tinha sido exposto publicamente e até à exaustão durante as jogadas mais renhidas do desafio. Ou é isso, ou então é a tentativa de defender o sonho de uma velhice cómoda e cheia de carros que só não passam dos 250 quilómetros por hora por causa das restrições digitais – mas esta hipótese é demasiado estúpida para ser verdade!
Pais e filhos (estes e muitos outros) convergem com naturalidade para as praças centrais de Lisboa e do Porto (as equipas das outras cidades não costumam ganhar nada que se veja, segundo me dizem) quando as suas equipas se tornam campeãs de qualquer coisa, não importa o quê, desde que estejam reunidas algumas condições: a presença de um convoy de roulottes que forneçam cerveja fresca e uns pedaços de gordura com muito mau-cheiro a que vendedores e compradores teimam em chamar ‘sandes’; a iminência do lançamento de fogo de artifício, única forma de colocar o povo a olhar para o céu nestes tempos falhos de evidências milagreiras e a expensas do erário público…
Mas isto já se sabe: é futebol, ninguém leva a mal; e a possibilidade de entoarem cânticos de júbilo e genuflexão perante a heroicidade dos vencedores, normalmente cheios de rimas em ‘ão’, ‘ões’ e ‘uta’, mas optando sempre, inevitavelmente, pelo vitupério ao adversário e não pela lauda à equipa do coração.
Ou seja: tudo o que está ligado ao futebol, seja ele um processo de crescimento e de educação, uma missa de felicidade ou outra coisa qualquer – e aqui não se aborda, por demasiado conhecidos, o ambiente dentro dos estádios de futebol; a movimentada vida dos adeptos reunidos em confraria iniciática (uma mistura entre religião, álcool e fumos que cheiram a adocicado); as pantominas burlescas de quase todas as declarações dos dirigentes desportivos, seja sobre que matéria for, numa língua que a maior parte das vezes tem assinaláveis semelhanças com o português; o totonegócio e os restantes casos de polícia que descarada e sazonalmente vão tentando transformar em força de lei; e finalmente o espetáculo absolutamente bruto, maniqueísta, imbecil e bastardo de centenas e centenas e centenas e centenas de horas de programas televisivos sobre futebol que (desculpem lá) não tem nada, mas mesmo nada a ver com jornalismo nem com debate – é, impreterivelmente, um lugar de violência.
E depois ainda se admiram… Só espero que o Governo não se dedique a perder tempo a produzir mais uma ou duas toneladas de legislação – que necessariamente não vai mudar nada porque não há nada para mudar. Quem gosta de futebol gosta assim, salvo uma pequena franja de minoritários (que por estes dias cresceu, para muito rapidamente voltar a esvaziar-se) que não interessam para nada.