Foi no final de 2010. Os efeitos da crise económica e da pressão sobre os juros da dívida faziam-se sentir e eram agravados pela crise do sistema bancário. Descendo do Chiado, cruzei-me com José Oliveira e Costa, que andava às compras. Fiquei primeiro em estado de choque: ali estava um dos responsáveis pelo agravamento das condições de muitos portugueses, livremente passeando pela baixa lisboeta.
Claro está, em seguida, racionalizei: o sistema de justiça faria o apuramento da verdade, era preciso aguardar. Reconheça-se que o próprio não exibia ar de felicidade. Apercebi-me depois que aguardava o julgamento em liberdade, após prisão domiciliária. Mas continuava a atravessar-me o incómodo pela sensação de disparidade. Com que frequência os arguidos, quando presos, ficam em prisão domiciliária?
Mal sabia eu que a procissão ainda ia no adro. Assistimos atónitos à vinda da troika e à queda das elites. Apesar de sinais de oposição, o país conformara-se a um dos regimes mais desiguais de distribuição de riqueza no ocidente e à subalternidade face aos que possuem uma posição de destaque. Assentes na riqueza herdada, na educação superior ou nas suas redes sociais e pessoais (e tantas vezes à custa de uma passagem pela política), pequenos donos disto tudo enxamearam o país.
Mas da queda do BPN e do BPP, à resolução do BES e do BANIF; do caso das caixas de robalo, ao processo dos vistos gold; da exposição do ex-presidente da República aos negócios do BPN à prisão de um ex-primeiro ministro, a monumentalidade do desastre fazia parecer que o país teria estado a saque todo este tempo, debaixo do nosso nariz. E isso lançou a semente de uma desconfiança total.
O desfile destes actores expostos nas comissões de inquérito e nas informações dos jornais dava-nos conta do seu incómodo com a prestação de contas. Durante anos, o seu estatuto protegeu-os de tal coisa. E com frequência responderam com explicações irreais e sem qualquer credibilidade. Há um problema sério quando as elites de um país infantilizam a sua população, confundindo mansidão com credulidade. Não sobra pedra sobre um regime que perdure nesse engano muito tempo.
O episódio das transferências para offshores sem registo dá sinal do incómodo latente. Desmentido pelos responsáveis da máquina fiscal, Paulo Núncio foi forçado a assumir a ‘responsabilidade política’. À terceira versão oferecida, que é afinal testemunho de mentira persistente, deu para o caso uma explicação irreal: a publicação das estatísticas daria vantagem ao infractor.
A ofensa à nossa inteligência colectiva é o motor da desacreditação de toda a elite política. De que serve afinal assumir a responsabilidade política? De que modo se traduz tal coisa? Quando a assimetria do massacre da máquina tributária fica desta forma exposta, sem consequência para quem a decreta; quando ela se cruza com o BES e o nó górdio de outros processos de tráfico de influência e de corrupção, todo o regime fica sob suspeita.
É verdade que casos destes existiram em todas as épocas recentes da nossa democracia. Mas a revelação simultânea de tantos episódios, a falta de mudança das condições para evitar a sua repetição, a queda acelerada da elite económica e política e a ausência de consequências visíveis, são pasto fácil para uma crise de confiança nas instituições. Num país em que o sentimento de impunidade se dissemina, uma pessoa honesta começa a sentir-se idiota.
A indignação generalizada na população sem catalisador não parece grande ameaça. Estamos aliás serenados sobre a ausência de populismos em Portugal. Mas este conforto pode ser enganador. Numa sociedade que permanece tão desigual, quanto tempo aguenta um regime político sob permanente suspeita?
O autor escreve segundo a antiga ortografia.