Desde a austeridade, ou mesmo antes, que é clara uma tendência de precarização dentro das universidades públicas portuguesas. Dados recentes indicam que perto de um terço dos professores destas universidades são contratados a tempo parcial, com um aumento de cerca de 15% entre 2010 e 2014. Estes docentes, sem contrato integral nem exclusividade, têm visto os seus horários semanais aumentar muito significativamente através da alteração de normas reguladoras dentro de cada universidade.

Assim, há hoje universidades onde um professor convidado chega a ter de leccionar 20 horas semanais, que é mais do dobro do que um professor de carreira lecciona. E como não há duas sem três, os contratos destes docentes expiram ao fim de um ano e só podem ser renovados um número limitado de vezes. Em suma, muito mais trabalho lectivo, muito mais mal pago e muito menos estável.

Durante os anos de austeridade foi restringida a contratação de professores de quadro pelas universidades através da Lei do Orçamento, mas não se adoptou o mesmo critério para professores convidados a tempo parcial. Com isto, as directivas de contenção orçamental foram sobretudo pretexto para promover a precarização nas universidades.

O executivo de António Costa, a ser consequente com a sua rejeição do programa político da austeridade, deve restabelecer o normal funcionamento das instituições de ensino superior, garantindo que, no essencial, operem com professores de carreira, não admitindo professores convidados a não ser para as funções lectivas que deles se esperam. Deve promover uma política de contratação de professores de carreira e estabelecer restrições suplementares à contratação de professores convidados, nomeadamente um tecto percentual de convidados nos corpos docentes das instituições de ensino superior públicas. Caso contrário, o que se está a tolerar é uma política de “falsos convidados”, em tudo semelhante à dos “falsos recibos verdes”, o que não é aceitável num governo de esquerda.

Mas por que passa tão bem nas universidades a contratação a tempo parcial? Ou mesmo, como caso limite, o trabalho docente sem salário? Se a tendência de precarização é indissociável de uma tentativa de redução dos custos de trabalho por pressão do subfinanciamento crónico das universidades públicas, é também resultado de uma boa política de formação científica que, desastrosamente, não deu lugar a uma política de emprego científico digna desse nome. Só uma reserva enorme de desemprego científico como a que se constituiu em Portugal justifica que tantos cientistas se disponham a trabalhar com salários que rondam o mínimo permitido por lei.

É claro que há outras remunerações além do salário. O prestígio universitário é um importante remunerador para quem dispõe de actividade profissional independente da universidade. Um jurista, um dentista, um psicólogo, certamente melhoram a qualidade da sua lista de pacientes ou clientes a partir do momento que podem juntar à placa fixada na entrada do prédio onde exercem, ou à página web que anuncia os seus serviços, o cargo de assistentes ou professores convidados em instituições de ensino superior público. E a possibilidade de transmitir em contexto universitário, sobretudo em turmas envolvidas em actividades de investigação, resultados e perspectivas de que se é autor ou promotor pode ser suficientemente remuneradora para que se conceba não ser necessário um salário. Quantas vezes não se conta com a generosidade de palestrantes que vêm participar de uma ou mais aulas sem nenhuma contrapartida?

Esta particularidade apreciável das universidades não deve, contudo, dar abrigo à exploração de ambiguidades, pois a tendência hoje é realmente a de contratar falsos convidados, pagos a tempo parcial, a trabalhar a tempo inteiro. E a de ter doutorandos e pós-doutorandos a leccionar gratuitamente na vã expectativa de, com mais uma linha de currículo, virem, mais tarde, a ganhar um salário decente. A escassez de trabalho científico faz deste um bem tão raro que se inverte a relação de remuneração, havendo quem se disponha quase a pagar para trabalhar. Só em dados oficiais, registou-se um aumento de 35% das contratações sem remuneração entre 2010 e 2014.

Uma segunda ambiguidade é a que confunde precariedade e competitividade. É verdade que as universidades têm de ser competitivas, e para isso devem ser capazes de mobilizar capacidades, proporcionar estímulos e oportunidades, produzir avaliações adequadas. Mas ao aguçar a competição com o aguilhão da extrema precariedade, como se de uma lei da natureza se tratasse, o resultado que pode esperar-se é apenas medo, conformismo e subordinação — o contrário da autonomia, ousadia e espírito crítico, próprios à atitude científica.

Por fim, depois da “remuneração” não assalariada e da precariedade “competitiva”, resta uma terceira ambiguidade, esta realmente endémica à universidade. O mal-estar que se vai vivendo entre bolseiros, convidados a tempo parcial e professores de carreira, dificilmente seria sustentável se as universidades não fossem tão exacerbada e estruturalmente piramidais. Os precários universitários, “falsos convidados”, bem como bolseiros e doutorandos que leccionam gratuitamente, estão apenas a constituir uma nova base da pirâmide que os antecedeu.

E se a enorme maioria dos professores de carreira permanecem exactamente no mesmo primeiro escalão da primeira categoria da sua carreira ao fim de uma década, apesar de várias vezes avaliados, não é disfarçável a impressão, diante do volume de novos colegas em extrema precariedade, de que tiveram apesar de tudo a sorte de ficar do lado vencedor desta desigualdade que se instalou nas universidades.

É necessário pensar, com coragem política, uma reforma da carreira universitária (e do ensino superior em geral) que atenue esta enorme desigualdade piramidal. Precisamente o que a criação de uma nova e precária infra-base da pirâmide não faz, ainda que pareça ser o caminho escolhido pelo actual ministro da Ciência ao contratualizar a precariedade na forma de “flexibilização” do emprego científico.

Seria mais construtivo pensar uma condensação de categorias ou escalões. Uma universidade virada para o mérito não beneficia de carreiras tão hierarquizadas, que facilmente se cristalizam em estruturas de distribuição de poder. Seria fundamental que se absorvessem na carreira todos os falsos convidados e que uma parte significativa dos docentes na carreira pudesse ter a expectativa realista de, com mérito, fazer uma progressão razoável. E aí, então, admitir concentrar a carreira nos quatro escalões de professor auxiliar (adjunto nos politécnicos) ou pouco mais. Por princípio é tão auto-contraditória uma universidade de castas que importa defender, como 2+2=4, uma universidade de pares.

O autor escreve segundo a antiga ortografia.