Até há umas décadas atrás, havia muitas queixas da justiça, mas que se limitavam à lentidão. Hoje em dia, a falta de confiança no nosso sistema de justiça continua a basear-se numa lentidão em total contradição com a aceleração da sociedade digital, mas passou a haver profundas suspeitas sobre muitos dos protagonistas do sistema judicial.

A sociedade portuguesa tem assistido, escandalizada, a um estendal interminável de acusações sobre figuras que ocuparam os mais elevados cargos na política e no mundo empresarial.

Sobre vários destes protagonistas impendem dezenas de acusações. Mesmo que nem todas se pudessem provar, já não dá para acreditar na presunção de inocência. Por isso, será para lá de escandaloso que, também nestes casos, tudo prescreva.

O que indigna, no meio desta escandalosa incapacidade da justiça portuguesa, é a tranquilidade que todo o sistema judicial exibe, como o que se estivesse a passar não fosse de excepcional gravidade. Este é, aliás, um dos problemas maiores da nossa justiça: os seus membros, nas mais variadas instituições e posições, parecem achar normalíssimo o que se tem passado ao longo das últimas décadas, em particular nos últimos anos.

O sentimento de injustiça, por parte da arraia-miúda, que se vê perseguida pelos mais insignificantes descuidos, como não pagar 60 cêntimos de portagem ou não indicar se um determinado número de telefone é da rede fixa ou móvel, é devastador. Gera uma revolta, uma descrença, uma destruição do fraco capital social que temos, da baixa confiança que temos uns nos outros.

Para além disso, de acordo com o European Values Survey, “ao longo dos últimos 30 anos, os portugueses têm-se declarado cada vez menos tolerantes em relação a comportamentos como a fuga aos impostos, a reivindicação de benefícios a que não se tem direito, à aceitação de subornos” (resumo publicado no site da Fundação Calouste Gulbenkian, 2021).

Ou seja, enquanto aceitamos cada vez menos a corrupção, assistimos à divulgação pública de casos cada vez mais gritantes e escandalosos e, ainda por cima, há sinais crescentes de que vão acabar em prescrição generalizada e total impunidade. Esta divergência de caminhos entre o que os cidadãos toleram e aquilo a que se passa na prática tem tudo para nos conduzir a situações de extrema gravidade. Quando estas se concretizarem, o que em parte já se passa, que todos os responsáveis pela degradação da justiça não se façam de desentendidos.

Em particular, os políticos que ignoram o que se está a passar e que acham que se pode deixar andar. O PS e o PSD parecem estar mais preocupados com os corruptos do próprio partido, mas vejo o silêncio da IL com crescente perplexidade, já que ainda não tem corruptos para defender e é evidente que este tema toca fundo em muitos eleitores.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.