Invertendo o sentido de anteriores decisões sobre a mesma matéria, o Tribunal Constitucional declarou inconstitucional uma parte da Contribuição Extraordinária sobre o Sector Energético (CESE) que incidia sobre as empresas concessionárias das atividades de transporte, distribuição e armazenamento subterrâneo de gás natural.

Esta decisão, que afecta as cobranças da contribuição efectuadas pela AT desde 2018, irá permitir às empresas em causa recuperar algumas dezenas de milhões de euros que entretanto tiveram de pagar, embora sempre sob protesto – as empresas do sector do Gás Natural sempre contestaram a sua sujeição à CESE porque se sentiam chamadas a contribuir para a resolução de um problema que dizia exclusivamente respeito ao sector eléctrico, e para cuja criação não tinham contribuído.

Além disso, a CESE era por demais penalizadora porque é calculada com base no valor dos activos das empresas e não dos seus lucros, e não pode ser deduzida no IRC.

Recordemos: a CESE foi criada no âmbito da execução do Programa de Assistência Económica e Financeira (PAEF) acordado com a União Europeia e o Fundo Monetário Internacional, como um instrumento destinado a combater uma situação de crise e a criar mais eficiência e dinamismo no sector.

Segundo argumenta o Tribunal Constitucional, “na sua configuração inicial, a CESE destinava-se, não apenas a acudir à premente resolução do problema do défice tarifário do [Sistema Eléctrico Nacional], mas principalmente a financiar políticas do setor energético de cariz social e ambiental, ações de regulação e medidas relacionadas com a eficiência energética”.

Tratava-se “de objetivos muito amplos, assimiláveis às incumbências fundamentais e prioritárias do Estado e de inegável interesse geral”. Assim, o produto da CESE seria aplicado no financiamento de medidas, acções e políticas que incidiriam sobre a globalidade do sector energético, “de que seriam beneficiários todos os operadores do setor da energia, e não apenas os (…) integrados no subsetor da energia elétrica”.

Além disso, a CESE era definida como “extraordinária”, o que o Tribunal considerou não como referente a um limite temporal, mas sim a “um certo estado de coisas”. Todas estas constatações levaram o Tribunal Constitucional a concluir que a regulamentação da CESE não violava a Constituição.

O que mudou então para que o Tribunal Constitucional altere agora a sua posição?

Fundamentalmente (há outras razões, entre as quais a eternização da necessidade desta contribuição extraordinária, mas esta parece ser a determinante), o destino das receitas da CESE foi, em 2018, alterado de forma substancial.

Com efeito, na sua concepção original, 2/3 da receita obtida com a CESE, com o limite de 100 milhões de euros, destinava-se a financiar “políticas do setor energético de cariz social e ambiental, relacionadas com medidas de eficiência energética” através do Fundo de Sustentabilidade Sistémica do Sector Energético (FSSSE) sendo o remanescente afecto à redução do défice tarifário do Sistema Eléctrico Nacional.

Mas, em 2018, o Governo alterou esta definição por entender que “os critérios de distribuição da receita obtida com a cobrança da CESE «se têm vindo a revelar demasiadamente rígidos, impedindo que, em cada ano, se possam ajustar os valores aos objetivos do FSSSE que se mostrem mais prementes»”.

Ou seja, os objectivos de gestão geral do instrumento alteraram-se. E já em 2018 o Parecer do Tribunal de Contas sobre a Conta Geral do Estado indica que a maior parte da receita da CESE foi usada para reduzir o défice tarifário do sector eléctrico.

A CESE deixou assim de ser uma contribuição extraordinária que visava a criação de benefícios para o sector energético em bloco, para ser quase totalmente aplicada na resolução do défice tarifário do sector eléctrico. E nesses termos as empresas do sector do Gás Natural passaram a ser efectivamente chamadas, como sempre argumentaram a resolver um problema que não lhes dizia respeito.

É essa alteração que leva o Tribunal Constitucional a mudar a sua decisão. Esta conclusão poderia ter sido antecipada, se houvesse coerência na gestão do instrumento – e o facto de a Autoridade Tributária não ter sequer apresentado contra-alegações indicia que a antecipou.

Neste caso, a gestão pública do instrumento financeiro pautou-se pela óptica da manutenção da receita, sem cuidar de confirmar se a continuidade da tributação estava adequada às finalidades inicialmente anunciadas. Ou seja, é preciso que o dinheiro continue a vir, depois logo se vê como se gasta. Assim, não admira que haja juízos de inconstitucionalidade.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.