“Enquanto a pobreza, a injustiça e a elevada desigualdade persistirem em nosso mundo, nenhum de nós pode realmente descansar” – Nelson Mandela

O combate à pobreza e à desigualdade não é apenas um desígnio moral ou humanitário. Muito menos se circunscreve a situações ligadas aos rendimentos ou à ausência de equidade de distribuição dos recursos económicos.

A pobreza e a desigualdade têm diversas dimensões nos dias de hoje, e as ramificações estendem-se a fatores políticos e sociais que, no contexto atual, podem moldar uma sociedade plena de complexidades e fraturas, apesar de todos os meios tecnológicos e de uma maior perceção global sobre os valores de sustentabilidade e da sua importância para atingir objetivos comuns de um mundo mais equilibrado.

Na verdade, e apesar da perceção mediática ser maior do que nunca no que diz respeito à relevância da construção de um mundo menos desigual e de maior compromisso com valores globais de sustentabilidade social e ambiental, a sociedade enfrenta uma degradação que pode ser fraturante e estruturalmente modificadora dos compromissos globais, como é o caso das alterações climáticas e, consequentemente, da erradicação da pobreza e desigualdade.

O mundo pós-Covid era já mais protecionista e com muitas cicatrizes por sarar. Agora, com o espectro do regresso a uma nova “cortina de ferro”, na sequência do conflito militar na Ucrânia, desenha-se um mundo mais dividido e potencialmente incapaz de se mobilizar em torno do combate às desigualdades que o ciclo de inovação tecnológica estrutural pode comportar.

O trajeto de redução da pobreza e desigualdade foi afetado pela pandemia, mesmo no mundo desenvolvido

Se houve progresso significativo nas últimas décadas, em termos de objetivos comuns de desenvolvimento humano promovidos por instituições internacionais globais como as Nações Unidas, então a erradicação da pobreza foi de facto exemplar.

Se olharmos em termos de critérios puramente quantitativos, como o da definição do Banco Mundial para pessoas em situação de pobreza extrema, que aponta para o número de pessoas a viver com menos de 2 dólares diários (1,9 dólares para ser mais exato), pode dizer-se que a sociedade mundial tem tido sucesso. Em 1990, cerca de 36% da população mundial vivia em condições de pobreza extrema, enquanto as últimas leituras pré-pandemia apontam para cerca de 8,6% (2018), o que representa um sucesso de grande dimensão.

Recorde-se que, em 2015, os líderes mundiais presentes na sede das Nações Unidas (ONU) estabeleceram uma carta de objetivos e medidas para garantir que, até 2030, não teremos mais de 3% do mundo a viver em pobreza extrema. Uma grande ambição que beneficia e sustenta a visão de um mundo mais solidário e de prosperidade partilhada.

Só que o mundo já não tem a mesma realidade geopolítica de 2015. Na realidade, o mundo encontra-se progressivamente mais longe de um consenso em torno dos benefícios da globalização – o peso do comércio internacional valia nas últimas leituras do Banco Mundial, em 2020, cerca de 51,6% do PIB mundial, bastante menos que em 2008, quando representava cerca de 61%, sendo que não deverá registar melhorias significativas nos próximos anos.

A pandemia também teve um impacto significativo, e originou um efeito de disrupção social a nível global, sobretudo nas economias mais vulneráveis que ficaram mais expostas a situações de pobreza extrema, fome e conflitos sobre recursos.

As estimativas do Banco Mundial produzidas em junho de 2021, evidenciam que a pandemia terá empurrado cerca de 97 milhões de pessoas para a pobreza extrema durante 2020. É difícil avaliar as implicações e impactos sobre a pobreza global a longo prazo. No entanto, é claro que a pandemia trouxe um efeito disruptivo negativo sobre o progresso da redução da pobreza inicialmente previsto.

Segundo as mesmas projeções produzidas pelo Banco Mundial, as taxas globais de pobreza extrema podem atingir entre 6,7% e 7% em 2030, o que significa entre 573 milhões e 597 milhões de pessoas. Ou seja, um retrocesso de sete anos em comparação com as projeções previstas em cenário de pré-pandemia.

O mundo desenvolvido também convive com o aumento do risco de pobreza e desigualdade

O empobrecimento não tem sido um exclusivo dos países de maiores dificuldades de afirmação no campo económico internacional. Os relatórios recentes produzidos pela OCDE mostram que a desigualdade de rendimentos aumentou na maioria dos países desenvolvidos nos últimos 30 anos e que a mobilidade social estagnou ou piorou em alguns países. De acordo com o relatório elaborado pela organização em novembro de 2021, “Does inequality Matter?”, quatro em cinco pessoas nos países da OCDE acham que as disparidades de rendimentos são significativas no seu país.

Os inquéritos demonstram que existe preocupação crescente com elevada disparidade de rendimento, assim como uma menor mobilidade social. O relatório também indicia que esta perceção não se encontra divorciada da realidade.

São vários os números na Europa que corroboram esta realidade no pós-pandemia. De acordo com think tank alemão Paritätischer Wohlfahrtsverband (Associação de Paridade e Bem-Estar), existem mais 13 milhões de pobres na Alemanha depois da pandemia de Covid-19, o que equivale a 15,9% da população – a taxa mais elevada desde a reunificação da Alemanha. Também em França, de acordo com a Fundação Abbé Pierre, a Covid terá criado mais um milhão de pobres.

O Eurostat confirmou em setembro de 2021 que cerca de 21,7% da população da União Europeia vivia em risco de pobreza ou de exclusão social em 2021, com Portugal a ocupar a 8ª posição no ranking de países em maior risco, com 22,4% de pessoas em risco de pobreza ou exclusão social (subiu de 20,0% em 2020), e acima da média da União.

As perspetivas futuras não são as mais favoráveis para inverter a atual tendência

Para além das fraturas que podem perdurar na sequência de uma menor globalização pós-pandemia, há ainda a recente ferida causada pela guerra na Ucrânia e pelas sanções económicas implementadas, que poderão moldar o futuro e agravar as desigualdades.

Uma nova “cortina de ferro” agrava as atuais condições de desigualdade na transição de saída da pandemia, e pode acentuar a geração de duas trajetórias principais algo divergentes no mundo. Nos países mais desenvolvidos, onde existiu uma distribuição mais eficaz das vacinas, um programa de transformação digital da economia mais bem-sucedido e novas oportunidades de crescimento económico, as perspetivas societárias no curto prazo são mais favoráveis (no sentido de rapidamente posicionar esses países no ponto de pré-pandemia), assim como de médio prazo, pois poderão implementar reformas que permitam tornar as economias mais resilientes para o futuro.

No entanto, muitos outros países poderão ficar para trás, condicionados pela baixa taxa de vacinação, contínua pressão em termos de resposta sanitária e menor acesso a tecnologia ou incapacidade do Estado de investir na transição digital, a par do sobre-endividamento e da incapacidade de investir, daí resultando mercados de emprego estagnados e problemas sociais.

Mesmo nos países desenvolvidos, a diferença de capacidade de resposta a conjunturas como a escalada de preços e a subida acentuada dos juros por parte dos bancos centrais, que tentam controlar a inflação, pode provocar um aumento acentuado das desigualdades, aumentar o número de famílias em risco de pobreza, e aumentar ainda mais o fosso da desigualdade salarial de género entre homens e mulheres, outra das grandes feridas abertas durante a pandemia.

Tudo isto é potencialmente gerador de mais conflitos e instabilidade social. Seja entre Estados com menor acesso a tecnologias e por isso crescentemente dependentes de recursos fósseis, aumentando o potencial para conflitos regionais, seja nos Estados mais desenvolvidos, onde as respostas falham em cumprir as expectativas de realização de vida, aumentando o divórcio entre as populações e os seus representantes, ao mesmo tempo que alimentam uma espécie de rebelião dos eleitores em torno de movimentos populistas e anti globalização.

‘Bottoms’ up’: manter o curso rumo a uma maior sustentabilidade

Os obstáculos que vão sendo colocados no caminho para a erradicação da pobreza e inversão das desigualdades não são negligenciáveis, nem devem ser encarados de forma ligeira.

Não é novidade para ninguém: o mundo e a sociedade estão a mudar de forma muito rápida, mudança esta que encerra em si bastantes desafios geopolíticos, tecnológicos e humanos.

A automação, o aumento do protecionismo e o regresso dos conflitos entre grandes potências colide com muitas destas frentes rumo à construção de um mundo mais sustentável. As respostas de políticas públicas, mas também a criação de programas financiadas por capitais privados, enquadrados dentro dos critérios ESG de sustentabilidade, serão de extrema importância para reequilibrar estes riscos em áreas de enorme relevância para combater a desigualdade e o risco de pobreza, quer no acesso à alimentação e educação, quer em áreas que estão a criar pressão sobre as classes médias nos países de maior desenvolvimento, caso do acesso a cuidados de saúde ou a habitação adequada, ou ainda da capacidade para suportar custos energéticos.

No que diz respeito a países europeus, como Portugal, esta conjugação de respostas é essencial para evitar uma maior erosão da classe média, e inverter o ciclo de empobrecimento populacional que, no final, poderá ter graves repercussões societárias e gerar instabilidade social.