A hipocrisia é tardia. Ninguém se insurgiu tanto como agora quando a FIFA decidiu o ultraje de optar pelo Qatar em detrimento dos Estados Unidos da América há 11 anos. A hipocrisia é tardia quando o próprio Joseph Blatter, rosto mais conhecido de uma cultura de alegada e arreigada corrupção, que dirigiu o organismo máximo do futebol durante décadas, veio afirmar que a escolha do Qatar tinha sido um erro.

A hipocrisia é tardia quando hoje se sabe que foram interesses políticos que nortearam essa opção. Como? A partir do momento em que o então presidente da UEFA, Michel Platini, revelou que colocou a sua capacidade de influência e lobby nas instâncias do desporto-rei, e junto de outras federações ao serviço dessa candidatura árabe, porque entendeu num jantar com o presidente francês da altura, Nicolas Sarkozy, que este desejava esse caminho.

O cheque veio mais tarde, quando as forças armadas do Qatar decidiram adquirir caças franceses no valor de 14 mil milhões de euros. Assim fica provado que a decisão sobre esta candidatura tinha muito pouco a ver com os interesses da promoção do futebol e muitos “comeram” com ela.

O Qatar gasta 200 mil milhões na organização do Mundial, mas até construiu menos estádios que outros países no passado. É um torneio marcado por 15 mil mortos, segundo relatórios internacionais, nas obras dessas catedrais do futebol, por violação dos direitos humanos, muito pouco respeito pelas mulheres e outros atropelos que não seriam permitidos em sociedades democráticas.

É daí que vem toda a polémica com a ida de Marcelo Rebelo de Sousa, António Costa e Augusto Santos Silva para apoiarem a selecção.

Mas em 2018, por exemplo, o Mundial realizou-se na Rússia e ninguém se indignou por os mais altos cargos do Estado se terem deslocado a um país onde há presos políticos, que não é propriamente um farol das liberdades individuais e tem um regime claramente autocrático.

O primeiro-ministro já disse que vai ao Qatar apoiar os 26 rapazes escolhidos por Fernando Santos e, cautelosamente, reforçou que isso não serviria para apoiar a situação política qatari. O Presidente da República foi mais longe: confirmou que iria lá criticar a violação dos direitos humanos. Assim se vê ao longe um incidente diplomático, pois Portugal tem boas relações com o Qatar e de lá pediram explicações ao embaixador português residente.

Se Marcelo criticar ali a violação dos direitos humanos será um herói internacional, num país que até treme e impede que jogadores usem uma braçadeira em apoio aos direitos LGBT. Enquanto a bola rola, há uma ditadura e uma série de práticas medievais que perduram, e perdurarão, por aquelas bandas. A hipocrisia é só agora se terem lembrado delas.

E não podemos esquecer que não são políticos nem treinadores, nem jogadores, aliás, os responsáveis por o torneio se realizar no Qatar. É apenas culpa da FIFA e da sua decisão que há mais de 11 anos já cheirava a corrupção por todos os lados. Era nesse momento que todos deviam ter batido o pé e rompido com o Qatar.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.