Os direitos humanos foram consagrados como direitos universais na declaração aprovada pelas Nações Unidas em 1948, em resposta ao traumatismo da Segunda Guerra Mundial resultante do genocídio de judeus e massacres racistas da Alemanha nazi.
A declaração de independência dos Estados Unidos em 1776 e a declaração dos direitos do homem em 1789, durante a revolução francesa, são geralmente apontadas como momentos de afirmação de direitos universais. A recusa do despotismo motiva a declaração americana, segundo a qual todos os homens nascem iguais e são dotados de direitos inalienáveis, concretamente do direito à vida, o direito à liberdade e o direito à procura de felicidade. O reconhecimento da soberania do povo está por trás desta declaração, que promove formas de representação política e a criação de leis favoráveis ao bem comum. Os temas da tirania e da justiça estão no centro da declaração americana.
A declaração francesa vai mais longe na especificação dos direitos – liberdade, propriedade, segurança e resistência à opressão. Repete que os homens nascem livres e iguais em direitos, acrescentando que distinções sociais só se podem basear na utilidade comum, ou seja, recusa a transmissão de privilégios hereditários. Torna explícito o princípio segundo o qual a soberania reside na nação, não no monarca, rejeitando o benefício privado do poder e prevenindo abusos com a separação de poderes. A utilidade de impostos em função da capacidade de pagamento de cada um é reconhecida. A igualdade na representação e no acesso a cargos é afirmada. O sentido de justiça é veiculado pela recusa da arbitrariedade de detenções e punições, a presunção de inocência, a liberdade de opinião, a responsabilidade perante o público dos agentes da administração.
O lado positivo destas declarações é a rutura com a sociedade de privilégio e o estabelecimento de princípios que devem guiar uma sociedade baseada na dignidade. As declarações consagram a noção de direitos inscritos na lei. Marcam a passagem da lei natural para a lei positiva. A lei natural, discutida desde a Antiguidade Clássica, acolhia uma noção difusa de direitos, entre eles a ideia de que o homem nasce livre, embora o direito dos povos admitisse a escravatura e formas de dependência. A passagem da noção difusa para a lei positiva, cujos princípios devem ser implementados, quebra a dicotomia entre princípios e realidades, encontrando-se o século XIX no fulcro desta transição que está ainda longe de ser cumprida.
O lado negativo destas declarações é que elas se dirigem ao homem branco. Logo de imediato Olympe de Gouges se insurgiu contra a não inclusão dos direitos das mulheres, posição secundada por Mary Wollstonecraft, outra fundadora do movimento feminista na viragem do século XVIII para o século XIX. Entretanto, a revolução de escravos e emancipados em São Domingos, futuro Haiti, mostrou o potencial dos direitos enunciados pelas declarações, pois foram de imediato apropriados, alargados e implementados pelos oprimidos. A grande lição é que o enunciado de princípios emancipatórios, mesmo que não seja dirigido àqueles que mais sofrem, acaba por ser usado por quem precisa.
- O debate
As declarações dos direitos humanos reclamam uma universalidade que foi finalmente consagrada pelas Nações Unidas. Esta universalidade traz consigo três problemas: a origem europeia; o contexto de produção e evolução; o significado político.
A expressão direitos humanos foi cunhada pela primeira vez por Jean Jacques Rousseau no Contrato social, embora sem elaboração. Contudo, Paul Gordon Lauren, no livro “The Evolutionary International Human Rights”, chama a atenção para o conteúdo universalista das diversas religiões do mundo e de sistemas ético-normativos, como o confucionismo, que convergem em atribuir um valor sagrado à vida humana. Estes princípios morais estão na fronteira com a normatividade. Gordon Lauren insiste igualmente na importância das políticas humanitárias desenvolvidas nos séculos XVIII, XIX e XX, particularmente o abolicionismo e a proteção de soldados e da população civil em caso de guerra, que conduziram á criação da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho, bem como à convenção de Genebra.
O abolicionismo teve um papel fundamental na campanha contra o tráfico de escravos e a escravatura, criando condições para expor a iniquidade das construções raciais e do racismo. É verdade que o sistema internacional antiesclavagista imposto pelo império britânico no século XIX resultou da independência dos Estados Unidos e da necessidade de recuperar capital moral num mercado internacional de trabalho que pretendiam nivelar a seu favor, mas as consequências foram significativas em todo o mundo. Poderíamos estender este raciocínio a outras divisões tradicionais da humanidade criadas para legitimar hierarquias, particularmente entre bárbaros e civilizados, entre colónias e metrópoles, homens e mulheres, estabelecidos e recém-chegados, nacionais e imigrantes.
Estas divisões têm vindo a ser esbatidas com o tempo, sobretudo depois da descolonização, mas ainda estamos muito longe de chegar a uma prática de respeito universal pela dignidade do ser humano. O problema da equivalência entre humanitarismo e direitos humanos, postulada por Gordon Lauren, é que estes conceitos se situam em planos diferentes, de intervenção moral e de criação de normas, embora a relação entre estes dois planos não deva ser ignorada.
Lynn Hunt chamou a atenção para a importância da literatura na emergência dos direitos humanos, pois o século XVIII é fértil em romances que promovem a empatia com as camadas inferiores da população, inspirando uma relação emocional com os explorados e oprimidos que influenciou os escritos abolicionistas de escravos emancipados e abriu caminho para a reforma dos abusos do processo penal, concretamente a abolição da tortura e da pena de morte. A ideia segundo a qual os direitos humanos acabaram por triunfar no tempo longo foi questionada por Samuel Moyn, que sublinhou o hiato entre as primeiras declarações e a declaração das Nações Unidas.
Enquanto Samuel Moyn apontava para uma muito recente adoção dos direitos humanos, resultante da queda de influência do marxismo nos anos de 1970, Immanuel Wallerstein rejeitava os direitos humanos como retórica do imperialismo, na esteira da crítica de Marx ao direito de propriedade consagrado pela revolução francesa. Contesto o valor utópico atribuído aos direitos humanos por Moyn, embora sejam um pilar importante da lei internacional contra constantes abusos, enquanto Wallerstein ignora o poder dos movimentos sociais na promoção da autodeterminação dos povos e dos direitos económicos e sociais.
- Desenvolvimento dos direitos
A diferença entre direitos civis e direitos humanos é que os primeiros são promovidos no âmbito de uma entidade política, enquanto os segundos são considerados universais. Contudo, não deixa de existir uma relação entre os dois tipos de direitos, funcionando os direitos civis como uma base de respeito pela dignidade humana, inicialmente a nível local, enquanto os direitos universais se alimentam do precedente dos direitos civis e podem influenciar o seu alargamento.
A importância dos sistemas normativos a nível comunitário tem obtido um crescente reconhecimento, embora a preservação de comunidades indígenas, sobretudo nas Américas, tenha justificado políticas contrastantes nos últimos dois séculos, da perseguição e segregação à proteção, ainda hoje ameaçada. O desenvolvimento histórico dos direitos civis nas civilizações asiáticas, por outro lado, tem vindo a ser objeto de pesquisa mais aturada. Contrariamente à ideia enraizada de ausência da noção de direitos na China, Hilde de Weerdt chamou a atenção para as diversas instâncias de petição, protesto, litigação e asserção de direitos nos períodos medieval e moderno a nível local. No Japão, os direitos das comunidades camponesas, consideradas a base do sistema económico e social, tinham um forte enraizamento, e qualquer tentativa de violação desses direitos suscitava uma resposta coletiva vigorosa.
O hiato entre as primeiras declarações formais de direitos e a declaração das Nações Unidas deve ser igualmente revisto. O extraordinário movimento de produção (e impressão) de projetos de constituição (muitos aprovados) em todo o mundo entre 1776 e 1889, estudado por Linda Colley, implicou a partilha, em diferentes graus, de direitos universais em centenas de textos relativos à liberdade de imprensa, liberdade de religião, habeas corpus (contra detenção arbitraria), soberania popular, liberdade de petição, expressão, reunião, comércio e circulação.
O que a Declaração Universal das Nações Unidas traz de novo é a inclusão dos direitos económicos e sociais, particularmente o direito ao trabalho, à habitação, à segurança social, sindicalização, férias pagas, salário igual para trabalho igual, escolaridade gratuita nos níveis elementares. A proibição de escravatura e servidão é formalizada, enquanto o direito de casar e fundar família sem constrangimentos de raça, nacionalidade ou religião é afirmado, assim como o direito à liberdade de pensamento e de religião, à livre circulação de pessoas e ao direito de asilo.
O desenvolvimento dos direitos humanos nas últimas décadas tem vindo a concentrar-se no respeito pelos direitos ambientais, dos quais depende a sobrevivência do planeta, pelas normas comunitárias, pela liberdade de orientação sexual, pela igualdade racial e de géneros, pela proteção dos dados pessoais e do indivíduo face ao Estado.
Em resumo, os direitos humanos podem ser manipulados e utilizados como retórica, mas a sua força resulta de sucessivas formas de apropriação e alargamento impulsionadas pelos movimentos sociais. São um instrumento poderoso para desafiar a opressão em todo o mundo, colocando a dignidade e a igualdade humana no centro das reivindicações sociais.
Francisco Bethencourt assina este texto na qualidade de autor do ensaio “Direitos Humanos”, editado em 2023 pela Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS), no âmbito da parceria entre o Jornal Económico e a FFMS.