O 14 de julho em França reveste-se da solenidade do dia em que o súbdito se tornou cidadão, em que a República vingou derrubando uma Monarquia que já não respondia aos anseios do povo. Viver esta data em França, após os tumultos dos últimos meses, fruto da contestação social generalizada, não deixa de ser uma experiência assinalável.
As cidades francesas enchem-se de gentes e a festa ecoa por cada recanto. O fogo de artifício ilumina rostos de diferentes origens, mas partilhando a língua francesa, a vivência naquele solo e, muito provavelmente, um futuro comum. Celebram-se a liberdade, a igualdade e a fraternidade, mas a recente instabilidade social evoca um passado longe de ser visto e sentido de forma comum, um presente em que ressaltam as desigualdades e um futuro num território político partilhado, mas debaixo de eventual contestação.
À satisfação da celebração, juntam-se os anseios de uma sociedade que, paulatinamente, teme pela sua segurança. Apesar de uma vigilância cordata e civilizada, sente-se aqui e ali pequenas tensões, patentes em situações muito particulares, mas também muito ilustrativas.
Um desses momentos tem lugar durante o passeio no centro da cidade, em que quatro jovens de origem africana que estavam na rua a beber uma bebida, logo que veem dois polícias a chegar, debandam, cada um para seu lugar, apesar de naquele momento não estarem a fazer nada de estranho.
Num outro instante, um grupo de sete militares armados de metralhadora patrulham uma cidade de maior dimensão ou até uma cidade de pequena dimensão, classificada como património histórico. Noutra circunstância, é uma avenida e ruas adjacentes que ficam interditadas e, sem explicações, somos obrigados a ir tomar um café a uma esplanada, a que se seguiu uma entrada no café e fecho de portas.
Percebemos depois que, frente ao hotel, tinha sido deixada uma bagagem abandonada que levantara suspeição. Mobilizou-se política municipal, a polícia nacional e militares. Felizmente, era só uma mala esquecida.
Havia um receio que pairava no ar pela turbulência que aquele dia festivo pudesse ter. Contudo, foi, tanto quanto pude observar, bastante calmo e sem incidentes de maior. Mais tarde, os noticiários e os jornais diriam que tinha sido mais calmo que no ano passado. Contudo, a manifesta presença das forças de segurança é parte do quotidiano francês, sobretudo, nas zonas mais urbanizadas ou de maior confluência turística.
Paz, concórdia, trabalho
Estes princípios maçónicos são, igualmente, os princípios da República Francesa que os enuncia a par da liberdade, igualdade, fraternidade. Poderá existir igualdade e fraternidade sem paz, concórdia e trabalho? Quão livres poderemos ser sem uma sociedade pacífica e harmoniosa? Creio que são estas as questões que agora agitam a sociedade francesa.
Sem, provavelmente, se terem dado conta, os cidadãos franceses foram construindo uma sociedade que não atentou nos equilíbrios necessários para garantir a fraternidade e a igualdade através da concórdia e do trabalho. Talvez seja essa a razão de um contexto social tão agitado que se revela nas tensões raciais, mas também nas tensões geradas por uma parca redistribuição da riqueza e da habitabilidade dos espaços nobres da sociedade.
O divórcio entre o exercício político, as políticas públicas e a população vem crescendo no país e tem levado ao crescimento dos extremos. Por um lado, alimenta-se uma sociedade cada vez mais securitária e um discurso que anima a extrema-direita populista, por outro, agita-se a insurreição numa sociedade que parece não conseguir incluir apesar de assimilar. Este chamamento aos extremos impede o diálogo que traga a si um debate para a resolução das causas do descontentamento.
Longe da concórdia, os habitantes das grandes urbes francesas parecem estar reféns de rastilhos que servem de motivo de contestação que depois incendeia os ânimos. Sem diminuir os motivos que levam à insatisfação social, a transformação da contestação em formas violentas acaba por produzir a divisão social.
Não deixa se ser irónico que o país que concedeu, pela primeira vez, o estatuto de cidadania e que enunciou a liberdade, igualdade, fraternidade como divisa esteja agora confrontado com tais divisões. Perante esta encruzilhada, como irá a sociedade na sua relação com o poder político responder a tal desafio? A resposta ainda não foi encontrada, mas, pela primeira vez, houve um reforço da reflexão sobre as causas sociais de tamanha insatisfação, com reflexo nos partidos políticos.
A outra França
Porém, existe uma outra França que atrai investimento e turistas. E outra, ainda, rural, pacificada pela história e, agora, dirigida a eventos que atraiam visitantes, onde a vida ainda corre tranquila e em que a própria paisagem inspira uma sensação de paz, harmonia e concórdia. Nessa França rural, agora vertida em polo de atração turística para amantes da natureza, da arte e da cultura, não há lugar a interrupções violentas.
O Estado francês tem investido bastante na sua presença nestes locais, mantendo serviços públicos e apoiando iniciativas ligadas ao artesanato, às artes e à realização de eventos. A ideia é fomentar a viagem por estes percursos que passam a oferecer, para além da paisagem, outros serviços úteis ao turista. Inclui-se nestes projetos turísticos, o estímulo dos percursos de peregrinação, evocando o seu tempo histórico e, em simultâneo, trazendo para o presente o prazer da caminhada e do contacto com a natureza.
Esta França calma que se procura renovar e estancar a saída de pessoas em zonas já desertificadas, sobretudo, fora do período de veraneio, faz esquecer a outra, dilacerada pela conflitualidade. Embora envelhecida, esta parte do país tem conseguido manter-se atrativa para visitantes que degustam os produtos locais, que procuram os elementos históricos e a ancestralidade medieval para conviver com o campo, amplamente transformado pela atividade agrícola intensiva, mas que ainda assim nos dá uma ideia de regresso à natureza.
A República em questão
Com sentimento popular profundamente republicano, a França precisa agora de encontrar o seu equilíbrio. Como país com alguma dimensão, as diversidades regionais, sociais e raciais tornaram-se desafios permanentes. Se a França foi eficaz na construção de uma nacionalidade que impôs o francês como língua e criou uma cultura com traços de homogeneidade, é também verdade que não pode a todo o custo recusar a diversidade que atraiu e, sobretudo, desintegrá-la ou aliená-la desta sociedade.
Assim como se têm encontrado vocações diferentes para a integração e desenvolvimento territorial, o mesmo terá de ser feito com as comunidades, em diálogo. Só assim as famosas divisas republicanas manterão o seu espírito e vocação universalista, que inspirou uma boa parte das repúblicas contemporâneas.