Foi em 2012, num restaurante barulhento do centro de Budapeste, sitiado por um nevão, algures pela terceira cerveja. Um empenhado amigo na construção europeia completava estudos de ciência política na Central European University (CEU). Eu participava na reunião de um projecto que mapeava alterações nas políticas de ensino superior na Europa pós-Bolonha. Aproveitámos para nos rever ao jantar.

Entusiasmado com o ambiente da universidade e da cidade, este holandês defendia que a União Europeia continuava muito guinada a ocidente e que era tempo de deslocar para o leste europeu as suas instituições. Era o novo centro da Europa; seria um gesto de verdadeiro alargamento. Argumentava que o discurso da divisão entre Velha Europa e Nova Europa de George W. Bush na caminhada para o Iraque fora eficaz pela existência desse sentimento; era preciso reunir.

Da minha periferia lusitana, via com relutância esta proposta: parecia-me que o ambiente especial da CEU lhe toldava a visão. Os países com frágil tradição democrática não eram centro, estariam sempre em perigo, seriam sempre fronteira, pelo menos de uma certa ideia de Europa. O debate tornou-se um desafio: apostava que em sete anos essa mesma ideia de Europa estaria ameaçada pela extrema-direita, em especial nos países que ele queria tornar o novo centro. Selamos a aposta com um aperto de mão, marcamos jantar para 2019 na mesma cidade.

A CEU, criada com dinheiro estrangeiro e um modelo distinto das universidades sobreviventes do bloco de Leste, era há muito um brilhante foco de liberdade e cosmopolitismo académico e sócio-político na região. À luz daquela experiência, o optimismo do holandês compreendia-se. Ainda hoje a instituição tem um impacto regional e global, figura nos principais rankings na área das ciências sociais, atrai estudantes e investigadores internacionais e promove estudos sobre transição democrática, direitos humanos e estado de direito. Não surpreende que viesse a tornar-se uma ameaça ao governo do partido Fidesz, ocupado a controlar todas as organizações do país.

A verdade é que apesar do encontro se realizar já dentro da era Orbán, os seus efeitos eram parciais e ignorados pela esperança da maioria. Recordo que o panorama só mudou com o relatório criado pelo eurodeputado Rui Tavares, que expunha com rigor factual as alterações legislativas na Hungria e as ameaças aos valores democráticos. O documento foi adoptado em 2013 por forças à esquerda e à direita do Parlamento Europeu e isso aniquilou a narrativa de Orbán de uma grande conspiração da esquerda europeia contra o seu governo nacionalista.

No caso da CEU, Orbán já ameaçou a retirada da acreditação dos cursos da universidade; criou legislação específica para questionar o seu estatuto legal (e abrir portas ao seu fecho e mudança de localização); fez uma campanha anti-refugiados e anti-Soros (o fundador da CEU), que lhe consagrou uma maioria de 2/3 no parlamento nacional, e agora ordenou o encerramento de cursos de estudos de género, ainda que estes tenham muita procura e notável empregabilidade. A Associação Europeia de Universidades já fez uma vigorosa condenação e classificou o país como um dos piores na Europa em autonomia universitária.

Tudo isto é apenas simbólico num país com iniciativas bem mais gravosas na perseguição à liberdade de imprensa, no ataque ao trabalho das ONG ligadas aos direitos humanos e no controlo do poder judicial.

O que releva de tudo isto é a tolerância das instituições europeias com a deriva húngara para o populismo e a xenofobia. O Fidesz integra o grupo parlamentar do Partido Popular Europeu (PPE), onde se sentam PSD, CDS e a CDU da senhora Merkel. Nem a lei que condena a prisão efectiva as pessoas que auxiliem refugiados na Hungria causou sanções ou uma tomada efectiva de posição dentro do PPE.

Mas a semana que vem reabre a oportunidade de remissão para o PPE: uma moção que pede ao Conselho Europeu para verificar a conformidade da Hungria com os valores da UE será votada pelos eurodeputados e cria pressão sobre o país. Ora, em 2013, os votos dos eurodeputados do centro-direita e a sua adesão aos valores democráticos permitiram a aprovação do relatório Tavares. E serão novamente estas forças a decidir esta votação no Parlamento Europeu. À beira das eleições europeias, o comportamento do PPE dir-nos-á muito sobre o que esperar do futuro do continente e da complacência com as forças populistas.

Em Fevereiro de 2019 completamos os sete anos da aposta. Nem eu nem o meu amigo holandês encaramos o reencontro com entusiasmo. Nunca imaginei verdadeiramente que fosse tão grave a normalização da extrema-direita na Europa. E o caso da CEU deveria ser levado muito a sério. Para resistir ao populismo, uma universidade basta. Para deixar morrer o projecto europeu, uma universidade basta também.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.