A emergência de um negócio sumarento de livros de autoajuda, escritos por “gurus” de origem oriental e profusamente distribuídos pelos hipermercados como se se tratassem de mercearia fina, levou a que este ocidente em perdição se tivesse esquecido de um dos mais conhecidos líderes espirituais desta nossa época de grandes transformações civilizacionais.
Dalai Lama, sucessor de uma linhagem de monarcas que também eram chefes espirituais e que governaram o Tibete durante duzentos anos (até meados do século XX), é hoje um refugiado, cada vez mais rejeitado pelos Estados democráticos e confrangedoramente relegado para o fim de linha de um tempo.
O escolhido para ser seu epígono, Gedhun Choekyi Nyima, foi aprisionado pela China, ocupante do território pátrio dos “lama”, e há décadas que não é visto ou conhecido o seu paradeiro. A escolha determina o caminho da liderança de todas as linhagens do budismo tibetano e, sem ela, degrada-se o sentido unitário que até hoje se confirmou.
A República Popular da China, em tempo de expansão comercial global, mantém as suas amarras nos campos político e religioso. Também inova na criação de uma sociedade marcada pela robotização humana e pela desgraduação progressiva da diferença. Trata-se de uma visão completamente “neocapitalista” da sociologia, uma negação da antropologia como ciência.
Por incrível que pareça, os ocidente e oriente liberais, nada querem saber, poucas vozes sobram depois de décadas de algum confronto, pé batido e aceitação do líder espiritual tibetano. A importância da economia chinesa é mais forte do que a excentricidade das vestes dos monges, do que a ausência de maldade e do que a irradiação de felicidade partilhada que o grande lama sempre transmitiu.
Está claro que não é só o facto de se consagrar uma autêntica barreira à prática religiosa. A estrutura dependente de Dalai Lama vai dando mostras de fragmentação, de afastamento e até de mundanice.
Muitos dos monges tibetanos que se radicaram na Europa e nos Estados Unidos têm engrossado as referências à perversão humana e corrupção espiritual. Não são raras as notícias de práticas maléficas e promiscuas no campo sexual que não diferem, de forma substantiva, das que se conhecem na Igreja Católica.
Há décadas que se indicava a existência de uma rede de corrupção ligada à venda das conferências do líder. Sempre foi dito que essas campanhas partiam da China e tinham por objetivo implodir a autoridade do chefe religioso. Acontece que a prisão de Tenzin Dhonden, ou lama Tenzin, que se apresentava como emissário pessoal para a paz, a sua suspensão e afastamento da administração do Dalai Lama Trust, confirmaram as notícias.
Nunca ninguém havia dado grande importância à leitura empresarial da “trust” que gravitava no núcleo dos lamas, mas o escândalo veio questionar a santidade com que se geriam, e gerem, os recursos financeiros e se promovia, e promove, a “palavra”.
Os dois universos que se indicam não são dissemelhantes do que aconteceu, e acontece, com a igreja de Roma. A falência do Ambrosiano e as ligações às máfias financeiras só assinaram uma outra dimensão, talvez porque a Igreja de Jesus, transformada em máquina, tivesse aprendido tudo com os Médicis, desde logo a gerir centralmente as venturosas dádivas do diabo através de indulgências.
Dalai Lama assina uma frase interessante. “Toda a ação humana, quer se torne positiva ou negativa, precisa de depender de motivação”. Nestes derradeiros anos em que o tempo falta ao líder espiritual tibetano, são nítidos os sinais de ausência de motivação, de total negação de luta silenciosa pela salvação. É aqui que tudo falha, que a dimensão intemporal, de que se reveste o mestre, se esvai.