Findas as Jornadas Mundiais da Juventude que reuniram os jovens católicos em Lisboa, inicia-se já a preparação das próximas jornadas, agora noutro país anfitrião, e fazem-se os balanços no país que as acolheu.
Se em Portugal ainda se discute a notoriedade, os impactos positivos desta iniciativa e se a relação entre custo/benefício a justificou (olhando de várias perspetivas que passam pela economia, sociedade e, também, religião), na Coreia do Sul projeta-se o futuro do evento.
Alguns fiéis foram surpreendidos pela escolha, apesar de ser recorrente afirmar-se o universalismo da Igreja Católica e a necessidade de corresponder aos novos tempos. Embora por terras lusas se afirme que a igreja é inclusiva, ainda dominando a perspetiva da sociedade/comunidade, a igreja de todos vai para além disso. É uma igreja que o Vaticano, ou, talvez melhor, o Papa Francisco, pretende de todos e para todos, sem discriminação social, de género ou etnia.
É nesse universalismo de uma igreja para todos que esta se estende a territórios em que a religião católica não é a predominante como no caso da Coreia do Sul, indo para além das contradições existentes nas sociedades tradicionalmente consideradas católicas.
Ao escolher este destino, o Vaticano reforça a sua influência ao nível mundial e globaliza o catolicismo, o que já vinha a acontecer com escolhas como as Filipinas, o Brasil (Rio de Janeiro) ou o Panamá. Quer isto dizer que a Igreja Católica deixa de automaticamente se identificar com países europeus, extravasando esse primeiro território que constituiu marca identitária da própria religião, ou não se situasse o Vaticano em Itália.
Contudo, a escolha de Seul traz uma novidade, a de devotos do catolicismo cuja catequização/conversão não se deu por via colonial, ou seja, nenhum país europeu administrou a Coreia do Sul e impôs como religião da elite dominante o catolicismo. Aliás, a Coreia foi palco exatamente do contrário, isto é, de movimento repressivos da expressão do catolicismo, tal como aconteceu em outros países da região, a começar pelo Japão que ocupou o território durante várias décadas.
Com esta escolha, o Vaticano não só reitera a universalidade da Igreja, como dá um passo à frente, indo para além dos espaços tocados e em tempos moldados pelo colonialismo ou imperialismo europeus. Desta forma, o Vaticano aceita e alinha na multipolaridade e multilateralismo, reivindicados por muitos destes países de geografias outras.
De facto, o catolicismo tem a sua base fundadora no Médio Oriente, mas a institucionalização eclesiástica católica já remonta ao legado do Império Romano, que foi fundador de uma parte substancial daquilo que constitui hoje o Ocidente. Assim, o cristianismo torna-se desde logo transcontinental.
República da Coreia, entre contradições e tensões
A República da Coreia, vulgarmente designada por Coreia do Sul, sofreu um processo de guerra civil e mantém a divisão com a parte norte da ilha. Trilhou um caminho com algumas vicissitudes até à democracia e continua a ter um regime político muito particular.
A sua defesa e segurança dependem não só do estacionamento de tropas norte-americanas no território, pagas pelo estado sul-coreano, como o país está impossibilitado de uma declaração de guerra sem que esta seja autorizada pelos EUA. Esta situação remonta ao pós-guerra entre as duas Coreias e mantém-se até hoje.
Apesar do longo caminho que o estado sul-coreano tem feito em direção ao “Ocidente alargado”, permanecem alguns pontos de tensão, como, por exemplo, um profundo desacordo relativamente às questões laborais por parte da União Europeia e da República da Coreia.
Para além destes aspetos, a sociedade sul-coreana caracteriza-se pela ausência de um estado social e por desigualdades muito marcadas entre os vários estratos sociais.
A ideia de inclusão na sociedade sul-coreana é algo distante. A par de uma economia formal vibrante, subsiste uma economia informal para os deserdados de uma sociedade que teve de renascer das cinzas. O país regista ainda a mais baixa taxa de natalidade do mundo, fruto não só do alto custo em criar uma criança, mas também das profundadas desigualdades de género que empurram as mães para fora de uma carreira profissional, logo que a criança nasce.
No entanto, o país é uma sociedade tecnológica, em que o nível de formação da população é assinalável, que conseguiu crescer economicamente, desenvolver-se e tornar-se parte fundamental da economia global, gerando também interdependências em seu torno.
Para além dos circuitos integrados, a República da Coreia também exportou com sucesso produtos culturais como o pop coreano, modelos de beleza e artigos de design, posicionando-se nesse aspeto entre os países mais desenvolvidos do mundo.
Do outro lado, encontra-se uma história difícil de gerir, em que monumentos que contestam a ocupação japonesa são colocados em frente à embaixada deste país em Seul. Ou os cidadãos que são estimulados a usar trajes tradicionais quando visitam monumentos nacionais, tendo a sua entrada franqueada, de modo a reafirmar a origem coreana daqueles mesmos trajes.
Neste sentido, a identidade coreana é muito desenhada pela resistência à influência cultural histórica da China (que chegou a colonizar o território) e à ocupação japonesa. A acrescentar, a divisão da ilha a lembrar que o fim da Guerra Fria não foi universal. Este é um ponto de permanente tensão, não só entre as duas Coreias, mas também servindo de ponto de ação/reação entre as potências que vão apoiando um e outro lado.
Se, na verdade, um conflito ou uma escalada de tensões não traz qualquer interesse para as partes envolvidas, o endurecimento discursivo e o incremento da pressão são, inúmeras vezes, usados como formas de expressar vontades relativamente a realidades que extrapolam a realidade da península.
Umas jornadas em preparação
A República da Coreia não é um país turístico ou habituado a grandes fluxos migratórios, como o eram os locais prévios de realização das jornadas, o que aumenta o desafio enfrentado por este país. Após as bem-sucedidas jornadas em Lisboa, tanto em termos de segurança, como até de mobilidade, Seul terá de preparar uma receção semelhante aos peregrinos.
É indubitável que o poder político se disponibilizou para ajudar nesta tarefa a Igreja Católica coreana, que conta apenas com 10% da população fiel do país. Mas como justificar tal candidatura, com uma percentagem tão baixa da população a proferir a fé católica?
Provavelmente, porque a República da Coreia busca o reconhecimento alargado do Ocidente, ou seja, identificar-se no maior número de aspetos possíveis com os países ocidentais, perpassando as questões políticas, culturais e sociais.
No fundo, associar-se a esse desejo de universalidade abraçando valores ocidentais, com base no cristianismo e, neste caso particular, no catolicismo. Acima de tudo, as jornadas de Seul podem contribuir para posicionar a Coreia como o extremo oriental das alianças e equilíbrios gizados a partir do Ocidente.