Regressei a Angola há sensivelmente 16 anos. Tinham sido poucas as vezes em que viera de férias e posso dizer-vos que uma das minhas características é a resiliência, pois trocar um futuro entre agrupamentos de escolas por uma vivência no país que me viu nascer, mas do qual tinha poucas experiências, só foi possível pela semente plantada desde tenra idade, em que musicou Paulo Flores que para ser feliz só se for em Angola…
Dirão: “a Kâmia é uma sonhadora, lírica talvez, que Angola é essa de que fala, quando fogem pessoas?” Sendo disso exemplo as Jornadas Mundiais da Juventude, facto prontamente desmentido pelas nossas autoridades…
Bom, a minha Angola é feita de pessoas resilientes, que acordam antes do sol nascer e labutam até o mesmo se pôr. Que não têm preguiça, como o estigma até hoje alvitra, e que tentam, com o pouco que conseguem, fazer um negócio que lhes permita sustentar a família.
A minha Angola é feita, também, de jovens ambiciosos, que inventam soluções que almejam resolver os problemas do povo, tendo em conta a nossa realidade. São disso exemplo os serviços de entrega, as aplicações de compras partilhadas ou a possibilidade de pagamentos electrónicos, mas também existem jovens que criam aparelhos de energia usando o sol ou tijolos sustentáveis.
Dir-me-ão: “mas se há isso tudo, porque fogem? Aí ou em outro país africano? Ou não acompanhaste o naufrágio da piroga com senegaleses ao largo da ilha do Sal em Cabo Verde?”
Após 16 cacimbos, isto é, 16 anos, devo confessar-vos que dou por mim a reflectir que o que faz com que Angola e outros países africanos não retenham os seus cidadãos, tem a ver com algo que posso apelidar como a síndrome do messias.
Creio que as pessoas estão sempre à espera de um salvador, que outros resolvam os seus problemas, e têm pouquíssima apetência para reivindicar os seus direitos. Tal poder-se-á explicar por uma instrução deficitária, mas de igual modo pela crença que será o presidente ou o primeiro-ministro a resolver o que de mal vai no país.
Com a excepção das manifestações, maioritariamente frequentadas por jovens, nunca vi a circular uma petição para que se resolva a situação dos vários dementes que circulam pelas ruas de Luanda. Sei de poucas organizações da sociedade civil que criam espaços de discussão onde se solicita a presença dos nossos representantes, os deputados.
Dinamizam-se mais debates nas redes sociais do que acções de sensibilização para que se vote lendo o programa dos partidos. A diferença geracional é outro grande problema, e mesmo que se afirme que a classe política está rejuvenescida, existem jovens com pensamentos retrógrados e mais velhos sem empatia.
A síndrome do messias dá-nos a falsa sensação da desresponsabilização, pois se os governantes não resolvem, quem sou eu para mudar? Argumentarão que tem a ver com os regimes políticos, com o peso de muitos anos de autocracia e o receio de represálias…
Dir-vos-ei que os governantes são escolhidos por nós e que devemos mobilizar-nos, e aos que estão à nossa volta, para que se exija uma prestação de contas. Se isso acontecesse, talvez não tivéssemos de assistir a um êxodo que leva tantas vezes à morte, ou que empurra cidadãos com competências para a emigração, desempenhando, em muitos casos, funções abaixo das suas qualificações.
Perguntar-me-ão: “e o que fazes tu para mudar?” Respondo-vos que escrevo, partilhando o que me desassossega, esperando que de algum modo outros se revejam…
A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.