Por razões que de imediato se tornaram claras para todos, o Bloco de Esquerda apresentou publicamente uma proposta para “travar” a “especulação imobiliária”. Rapidamente, António Costa veio dizer que o seu governo não aprova a medida, por ser um imposto que duplica um outro que “já tributa o que há a tributar”. O PCP, como seria de esperar, notou os “objectivos políticos evidentes” da proposta, e o CDS classificou-a de “demagógica”. Já Rui Rio preferiu dizer que não se trata “de uma coisa assim tão disparatada”, e propôs de seguida um disparate igual. Os seus críticos internos (e até alguns apoiantes), claro, mostraram-se horrorizados com a “descaracterização ideológica” do PSD. O Presidente Marcelo, por sua vez, conseguiu não dizer asneira, mas só porque, por uma vez na vida, não disse nada.
A polémica em torno da proposta bloquista conseguiu a proeza de simultaneamente ser um exemplo da artificialidade da discussão política em Portugal e da substância dos problemas da nossa democracia. Como qualquer pessoa cujo espírito não esteja possuído pela clubite partidária ou pela simples falta de senso percebe, nenhum dos intervenientes na polémica deixou a sua posição ser moldada por algo que se pudesse assemelhar a uma convicção. Limitaram-se, pura e simplesmente, a fazer pose.
Ao apresentar a proposta, o BE procurou expiar-se dos pecados de Ricardo Robles, que tanto incomodaram a sua má consciência. Ao se distanciar dela, o governo procurou “passar a ideia” (em Portugal, as ideias não são algo que os políticos tenham, apenas algo que “passam”) de que não está “refém” do “radicalismo” bloquista. Com as suas críticas, o PCP pretendeu exibir a sua repugnância pelos truques mediáticos do BE, e o CDS quis convencer os eleitores (e, talvez acima de tudo, convencer-se a si próprio) de que é mesmo quem “lidera” a oposição. Já Rio, esse, quis provar ser um político que, como disse aos jornalistas, não é “contra” algo só “porque vem de A ou B”, enquanto os enlutados do passos-coelhismo usam a inépcia do seu odiado novo líder para se fingirem “liberais”. Mas, no fundo e salvo divergências nos detalhes, todos querem mais ou menos o mesmo, quanto mais não seja porque os seus eleitorados, na medida em que ainda não os trocaram pelos encantos da abstenção, querem todos mais ou menos o mesmo: o máximo possível de benefícios oferecidos pelo Estado com o mínimo possível de saque de parte do seu rendimento para financiar o rodízio orçamental.
Esse sonho português de Socialismo no Estado-Providência com Estado Mínimo no fisco é manifestamente intraduzível para a realidade. Ou o Estado fica sem meios para ser tão generoso quanto os portugueses desejam, ou precisa de lhes cobrar impostos bem mais elevados do que gostariam de pagar. Em certas alturas, acontece o que se passa hoje em dia: uma triste combinação destes dois cenários. Só podendo tirar-lhes muito para lhes dar pouco, o Estado português condena os portugueses a uma progressiva degradação das suas condições vida, que só a conjuntura internacional, quando favorável, vai aliviando. Entretanto, os eleitores vão combinando o descontentamento com os resultados do estatismo de austeridade em que vivem com a relutância em fazer as reformas que poderiam libertá-los dele. A falta de apoio popular para a mudança faz com que todos os partidos, do BE e do PCP ao CDS passando pelo PS e o PSD, se abstenham de propor as reformas de que Portugal precisa, agravando a situação do país, acentuando o descontentamento dos eleitores e a sua falta de confiança nos governos de qualquer partido, lançando o sistema político como um todo num ciclo vicioso do qual não se vislumbra qualquer saída.
Perante isto, os “responsáveis” políticos (com Marcelo à cabeça) limitam-se a fingir que lidam com os problemas do país e que acreditam em alguma coisa, enquanto um número cada vez maior de portugueses já nem conseguem fingir que acredita neles. Há dias, noticiava-se algures que a democracia portuguesa era a 10ª mais saudável do mundo. A ser verdade, é algo que não abona nada a favor do mundo.