Numa das peças de Eugène Ionesco, “Le roi se meurt”, a dada altura somos brindados com a descrição de uma “imortalidade provisória”. Nessa cena, o rei, que já vivera séculos e se cria imortal, envelhece subitamente e apercebe-se que morrerá; vexado, protesta, “os reis deveriam ser imortais”; em resposta, ouve que a imortalidade de que gozam é “provisória”.

Quando penso sobre o problema da precariedade e das promessas para mitigar esse problema, dou por mim a representá-lo como se fosse uma forma invertida, e pervertida, desta imagem de Ionesco. Como descrever uma situação que deveria ser provisória mas se eterniza? Tomemos como exemplo o caso do trabalho em investigação científica em Portugal.

Portugal face à ciência: da visão prometeica à precariedade das condições

À primeira vista, a importância da promoção do conhecimento, nele incluindo as políticas públicas de ciência, granjeia quase um consenso político em Portugal. Desde a adesão de Portugal à União Europeia, o trajeto sempre pretendeu ser de convergência. Para ultrapassar o atraso histórico e tornar-se um país ‘moderno’ importava não só o crescimento económico e a modernização das infraestruturas, como também uma aposta na educação e na ciência, nelas incluindo a formação avançada.

Tal desígnio recebeu um forte impulso através da visão de Mariano Gago e da criação da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). A transição do século passado para o presente assistiu a uma aposta continuada na formação avançada, sobretudo através do recurso ao mecanismo das bolsas de doutoramento e pós-doutoramento financiadas pela FCT.

Em resultado, o acesso à formação de ponta nas Universidades portuguesas e estrangeiras deixou de ser o privilégio de uma pequena elite e o sistema científico e técnico nacional (SCTN) desenvolveu-se. Poder-se-iam citar os números das publicações científicas indexadas, de patentes, ou a evolução do investimento em I&D ao longo dos anos (e cujo aumento, nos últimos anos, se fez sobretudo nas empresas) mas, para o que nos interessa aqui, relembremos apenas a evolução do número anual de doutoramentos em Portugal.

No ano da criação da FCT, em 1997, doutoravam-se em Portugal pouco mais de 200 pessoas por ano. Na última década, esse número tem oscilado, se falarmos em números redondos, entre os 2000 e os 2500 doutoramentos por ano (PORDATA), grande parte deles financiados pela FCT.

Em resultado, formaram-se gerações de investigadores bem preparados e muito competitivos a nível internacional. A evolução foi notável. E isto apesar do muito que falta fazer: Portugal ainda está abaixo da média europeia em termos de percentagem do PIB dedicado a I&D bem como de trabalhadores com empregos nesse setor, tendo também as Universidades um crónico problema de subfinanciamento.

Contudo, a aposta nas bolsas, inclusive a nível pós-doutoral e muitas vezes de muito curta duração, significou, para várias gerações, um nível muitíssimo insuficiente de proteção laboral, e uma instabilidade permanente. Os investigadores andaram de bolsa em bolsa, muitas vezes com períodos de transição não financiados. E esta situação tem consequências negativas.

Entre as pessoais, reportam-se o adiamento da maternidade, a necessidade de recorrer a ajudas de todo o tipo para fazer face a despesas em períodos não financiados, ou a dificuldade em ter acesso a crédito para compra de casa. A nível da própria atividade de investigação, também se tem assinalado o tempo permanentemente perdido à procura de financiamento para novos contratos e que, assim sendo, não é dedicado à investigação.

Norma transitória, estímulo científico e FCT Tenure

Temos, pois, um SCTN que encontra na precariedade uma das suas debilidades mais prementes, porque arrisca permanentemente perder os trabalhadores dos quais as instituições dependem para sobreviver, não lhes dando condições para desenvolver o seu trabalho em continuidade.

Nada disto é novo, o problema está diagnosticado há muito e uma primeira tentativa de o mitigar foi feita durante a vigência da geringonça com a aprovação do DL57/2016 que permitiu a muitos dos anteriores bolseiros de pós-doutoramento candidatar-se a procedimentos concursais que lhes concediam um verdadeiro contrato de trabalho (precário), através da chamada “norma transitória”, o que deu origem a cerca de 1700 contratos de trabalho, dos quais cerca de 1200 ainda estarão em vigor.

A estes, juntam-se os contratados pelos concursos de estímulo ao emprego científico (CEEC) e, entre outros, os contratados diretamente por projetos de investigação. No cômputo geral, a FENPROF estimava em novembro de 2022 a existência de mais de 4000 investigadores em situação de precariedade, e cerca de 400 investigadores com contratos permanentes, rácio de precariedade que excede o de muitos países da União Europeia.

Esta solução “transitória” melhorou as condições de trabalho da investigação a nível pós-doutoral (no doutoramento mantêm-se as bolsas) mas, ao mesmo tempo, apenas protelou um problema durante seis anos, já que grande parte destes contratos de trabalho terminarão no próximo ano. Aproximamo-nos de mais um momento decisivo para o futuro da investigação científica em Portugal. Talvez se consiga dignificar a profissão, dotando-a de estabilidade e previsibilidade, e abrindo a porta à regularização da maioria destas situações.

Mas não é certo que tal aconteça. Num artigo no “Público”, Isabel Corrêa da Silva e Filipa Lowndes Vicentes recordam como a política científica portuguesa desde há mais de 200 anos é marcada por um padrão no qual a momentos de incentivo e investimento se segue o fracasso em dar continuidade ao esforço inicial. Correremos o risco de reincidir no erro?

O mais recente programa concebido pelo Governo para dar resposta a este problema intitula-se FCT Tenure. Entre outras medidas, prevê abrir 1400 posições permanentes até 2025, 1000 ainda este ano e 400 em 2025, esperando-se uma periodicidade bianual de abertura de vagas a partir daí. O Governo quer com isso integrar doutorados nas carreiras de investigação ou docência, cofinanciando a FCT os salários dos investigadores (por seis anos) ou docentes (por três anos) que ganharem esses concursos.

Não se conhece ainda a forma final do mecanismo, aguardando-se que possa entrar em vigor em setembro. Ele já tem, no entanto, sido alvo de críticas de investigadores e do próprio CRUP – Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas, que não quer as Universidades a assumir o encargo permanente com a contratação de 1400 investigadores sem garantias de um reforço financeiro também permanente. Já para não falar na escassez destes números para fazer face ao número de contratos (incluindo os do CEEC) que terminarão até 2025.

Parece, portanto, que este programa será insuficiente e que nada se resolverá enquanto o investimento público na ciência não aumentar de forma sustentável e permanente. Quanto aos investigadores, nos quais me incluo, continuaremos a assegurar a continuidade de boa parte da produção de conhecimento em Portugal, esperando não ficar condenados a ser… eternamente transitórios.