Na minha infância quando os meus pais chegavam a casa, é claro, dava um beijinho a ambos, um. Quando saía com eles ou com um deles e encontrávamos alguém, o meu pai ou mãe dizia-me: “dá um beijinho” ou a pessoa em questão dizia-me: “não me dás um beijinho?” e eu dava um beijinho. Muitas vezes a pessoa em questão, apesar de eu ser uma criança, estendia-me a mão e eu estendia a minha. Fazia-se muito.
Nas festas de anos, as primas e tias bastante mais velhas, de idade, quando eu aparecia e ia dar um beijinho, levantavam o véu do chapéu (lembro-me muito bem, os véus eram de rede) e algumas davam-me um beijinho na cara, outras na testa e outras ainda no canto da boca (seria possível hoje em dia?) Parece que era comum a muitos países da Europa e vinha dos tempos victorianos. Não gostava, ficava lambuzado mas por boa educação não limpava a boca com a mão. Depois davam-me o presente e algumas ainda abriam a carteira para tirar de lá surpresas, chocolates e chocolates…
Cresci e as coisas não mudaram na família. Um beijinho para pais, tios, criadas velhas consideradas de família, primas e o resto, aperto de mão. Um pouco mais tarde apareceu a moda de dar um beijinho às amigas. Na rua, fazia as senhoras virarem-se para trás nos autocarros, escandalizadas.
Mais tarde ainda veio o meu exílio e fui para fora, Bruxelas e depois Londres. Na Bélgica, três beijinhos para ocasiões formais, um para o dia-a-dia, fácil para mim, excepto quando era apresentado e ao fim de um ia afastar-me e pespegavam-me mais dois! Em Inglaterra, nada, apenas um “Hello” a uma distância de quem tem medo de apanhar qualquer doença e, só muito raramente, um aperto de mão. Um beijinho, ah, quando o rei faz anos!
Uns anos mais tarde quando voltei, depois do 25 de Abril, para minha surpresa, vi que as pessoas aqui davam dois beijinhos em vez de um. De onde teria vindo esta moda? Não me preocupei. Quando de vez em quando dava com alguém que, à antiga, dava um, era uma confusão…
Lembrei-me de tudo isto por causa dos recentes acontecimentos à volta do caso do beijinho espanhol. Com toda a franqueza, acho ridículo. Tenho de começar por dizer que não percebo nada de futebol, mas vi fortuitamente na televisão fins de jogos onde jogadores da equipe vencedora ou mesmo depois de marcarem um golo, pulam e pulam e agarram-se uns aos outros de pernas no ar e dão beijinhos na boca.
Não sei se há escândalo mas nunca ouvi dizer. Ouvi, outrossim, este caso recente, porque mudando de canal é impossível escapar. Tanto no primeiro como no segundo casos não se tratará de alegria desportiva? Mas afinal o desporto é um concurso de duas equipes ou mais, é o tratamento do corpo e da mente e alegria ou é uma espreita permanente para chatear o próximo?
Não há feminismo que justifique a atitude actual, primo, espanhola, secundo, mundial.
No dia 25 de Julho, aqui mesmo, no meu artigo sobre a Carmen, transcrevi uma parte do texto de Prosper Mérimée e da sua Carmen, onde ele, por sua vez, cita Ovídio: Casta quam nemo rogavit (é pura a desdenhada) Ovídio – citado por Mérimée no fim da sua obra “Carmen”, de 1845, no Cap. IV, ao fazer uma espécie de ensaio sobre os ciganos, quando alega que dizem que as ciganas são castas fora da sua gente.
Termino afirmando que tenho muito respeito pelas feministas para considerá-las, cito, “como aquelas que são desdenhadas”.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.