Os problemas do SNS

O tempo tem evidenciado muitos problemas com a capacidade o Serviço Nacional de Saúde (SNS) responder às necessidades dos portugueses. Há encerramentos de urgências e de serviços de maternidade, há longos e crescentes tempos de espera para cirurgia e para consultas de especialidade e há falhas crescentes na cobertura da população por médicos de família.

O que tem conduzido à degradação do SNS? A comunicação social refere a falta de financiamento e a falta de médicos ou de enfermeiros. No entanto, análises recentes mostram que o número de médicos e de enfermeiros tem vindo a subir e que o próprio financiamento do SNS tem crescido. O que se tem deteriorado é a produtividade destes recursos. Por exemplo, a queda da produtividade por hora trabalhada vinha de antes e continuou a ocorrer depois da alteração, em 2019, dos horários de trabalho, que passaram das 40 para as 35 horas semanais para a generalidade das profissões no setor da saúde.

Os problemas do SNS têm raízes profundas. A saúde é uma área em que estão envolvidos muitos interesses e grupos de pressão, desde os profissionais de saúde aos administradores hospitalares, passando por outras classes profissionais e por todo o tipo de fornecedores de bens e serviços, incluindo a indústria farmacêutica, a dos dispositivos médicos ou a das tecnologias de informação. Todas estas entidades contribuem para o sistema de saúde e têm interesses legítimos, no entanto as necessidades mais importantes — as da saúde da população e as dos contribuintes portugueses — correm o risco de ficar secundarizadas.

A redução do peso do Estado resulta das políticas adotadas

O livro considera a tendência de longo prazo de redução do peso do Estado no sistema de saúde, quer na perspetiva do financiamento (quem paga, de onde vem o dinheiro) quer na perspetiva da prestação de cuidados (quem é pago). Existe uma grande diferença entre as retóricas dos principais partidos e a convergência real de resultados que procede da sua governação. Desde há muitos anos que nos Governos e nos Ministérios das Finanças é dominante a ideia de que o SNS está sempre pronto para gastar tudo o que puder, pressionado pelos grupos de interesse e pelas corporações, num processo despesista que constitui um risco para as finanças públicas.

Todos os anos o SNS e os seus responsáveis (e outras partes interessadas…) queixam-se do “subfinanciamento”. Uma justificação das restrições impostas pelas Finanças é que dando menos dinheiro ao SNS este reagiria, melhorando a gestão dos seus recursos. Na prática, os resultados contradizem esta esperança, já que o SNS tem uma longa história de não respeitar os limites orçamentais que as Finanças tentam impor, criando dívidas a fornecedores e outras entidades que regularmente têm de ser amortizadas por orçamentos extraordinários.

Outra consequência das tentativas de controlar as despesas na saúde e de limitar as suas ineficiências, foi a generalização da supervisão de muitas decisões de gestão pelas Finanças. Qualquer contratação no SNS, por mais trivial que seja, precisa de autorização. A autonomia de gestão das instituições do SNS é diminuta e, numa perversão da lógica habitual, com cada vez menos poder, vem cada vez menos responsabilidade. Infelizmente, é provável que as suspeitas das Finanças tenham algum fundamento. Financiamentos à partida suficientes seriam sempre tratados como pontos de partida para se fazerem despesas ainda maiores…

O resultado é que o SNS nunca tem recursos que considere razoáveis, e apresenta permanentes ineficiências e falhas de gestão associadas a uma sistemática falta de autonomia, limitando grandemente a satisfação das necessidades de saúde da população.

Surpreendentemente, as políticas de contenção de custos adotadas pelas Finanças têm sido bem-sucedidas, mas de forma inesperada. Quando se baixa a qualidade e a acessibilidade dos cuidados de saúde, criam-se condições para um crescimento da procura no setor privado, o qual tem tido resposta do lado da oferta. O grande desenvolvimento do setor privado gera enormes poupanças para o Estado. Sem a prestação de cuidados realizada e financiada privadamente haveria um enorme aumento das despesas públicas. Quanto mais a procura for redirecionada para o setor privado, mais o Estado poupa.

Um outro aspeto do desvio da procura para o setor privado é o impacto na progressividade fiscal do próprio financiamento do SNS. Este é suportado pelas receitas gerais do Estado. Pagamentos pelos utilizadores, as taxas moderadoras, são tão reduzidos que se podem considerar irrelevantes na ótica de financiamento.

Ao baixar a qualidade de serviço do SNS e induzir segmentos da população com rendimentos médios e altos a recorrer ao setor privado, gera-se uma situação em que estes grupos pagam pelo SNS com os seus impostos, mas utilizam-no cada vez menos. Paradoxalmente os mais pobres são favorecidos pela redução da qualidade do SNS: se este melhorasse, os grupos populacionais com rendimentos médios e altos passariam a utilizá-lo mais, aumentando os seus custos. Isso levaria a um incremento dos impostos em geral, incluindo aqueles a pagar pelos mais pobres.

Um equilíbrio político instável

Em suma, a reduzida qualidade do serviço do SNS conduz-nos a um equilíbrio político, que pode não ter sido explicitamente desejado por ninguém, mas, na verdade, resolve o problema das Finanças, a contenção de custos. Resolve-o de uma forma redistributiva já que quem ganha são os mais pobres graças ao aumento da progressividade no financiamento do SNS.

Este equilíbrio é instável a longo prazo. Durante muito tempo, o desvio da procura para o setor privado foi visto como um movimento com limites naturais, porque o setor privado, à parte alguma conveniência, não era visto como uma verdadeira alternativa ao SNS. Surpreendentemente, como se pode constatar ao ler as secções do livro sobre a oferta privada de cuidados de saúde, o crescimento do setor privado nos últimos anos revelou um grande dinamismo, apanhando de surpresa os mais confiantes no domínio permanente do SNS.

Existem atualmente unidades de saúde privadas com níveis de sofisticação que nada devem ao que de mais avançado se faz no SNS. A concorrência assimétrica entre um SNS quase sem custos para o utente e as unidades privadas que precisam de ser remuneradas levou estas últimas a adotar estratégias para sobreviver e ter sucesso. O setor privado tem inovado nos cuidados de saúde, na adoção das tecnologias digitais e na qualidade de serviço. Adicionalmente, tem adotado uma postura de responsividade às necessidades dos doentes, e ao mesmo tempo tem sido objeto de uma gestão mais rigorosa e com maior controle de custos. Os resultados estão patentes no seu crescimento.

Apesar de a maioria da população continuar a depender quase totalmente do SNS, a proporção nessa situação tem vindo a descer. No limite, corre-se o risco de este modelo político começar a falhar e de passarmos a ter um “SNS dos pobres”, de qualidade tolerável e negando o princípio da sua universalidade. Se queremos evitar uma tal evolução vai ser preciso empreender reformas estruturais, as quais serão difíceis, pejadas de conflitos, e recorrendo a todos os instrumentos à disposição da política de saúde, incluindo, sem ironia, a utilização dos privados com a sua contratualização na prestação de serviços no contexto público.

Miguel Gouveia assina este texto na qualidade de autor do ensaio “Saúde e Hospitais Privados em Portugal”, editado em 2023 pela Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS), no âmbito da parceria entre o Jornal Económico e a FFMS.