Um dos problemas da maneira como habitamos o mundo é esta vontade de passar pelo mundo sem que o mundo passe por nós. É a vontade das grandes obras, para sempre, sejam as pirâmides de Gizé, a resistir à acção do tempo, a Grande Muralha da China a ver-se do espaço, ou os maiores arranha-céus das arábias a escalarem os céus, indiferentes ao chão donde se lançam em alturas.

Ou todas as outras criações, mesmo as imateriais, concebidas com essa fantasia do ficarem para sempre, a literatura universal, para todos os tempos, mesmo que desconheça por inteiro qual a nossa história futura, e a história futura sem nós. Ou as acções dos heróis, os grandes feitos, todos pensados à luz desta perpetuidade pétrea. Tudo isto a querer ser ouro, o metal com mais valor, precisamente o que menos reage e por mais tempo se conserva intacto.

Mas esta tentativa de marcar o mundo e o seu tempo sem que o mundo consiga devolver o gesto, tentativa que atravessa a própria ideia de civilização e sua necessidade de se petrificar, trai o mundo. Porque lhe subtrai a possibilidade e a generosidade de acolher. E trai-nos a todos, porque o mundo afinal somos todos. É estarmos no mundo como um ET, estranhos em terra estranha, a marcar sem se deixar marcar, uma luta, até nas coisas mais íntimas.

Não somos verdadeiramente habitantes do mundo quando não nos deixamos tocar pelo mundo, que é também deixarmo-nos tocar uns pelos outros, pelo envelhecimento, as fragilidades. Nós, mas também as coisas de que nos rodeamos, feitas de plástico, sintéticas, indiferentes aos agentes do mundo, resíduos perpétuos. Irónica e paradoxalmente, nesta nossa época esses plásticos e microplásticos são os modos mais presentes da vontade do para sempre. São o ouro desta realidade artificial com que substituímos o mundo.

Decerto, há outros modos de fazer obra que, resistindo à passagem do tempo, façam, contudo, expressão de uma passagem do mundo sentida. Há obras que não ignoram a passagem do tempo, mas, pelo contrário, fazem reflectir sobre o seu significado e até o incorporem numa práxis. Exemplo extraordinário encontra-se na tradição japonesa de conservação do Santuário xintoísta de Isu, ou santuário Jingu, palavra que significa justamente “o santuário”. A cada 20 anos, Jingu é reconstruído segundo as mesmas técnicas com que foi construído pela primeira vez há dois milénios. Em 2013 teve lugar a mais recente reconstrução, sendo a próxima esperada em 2033. Agora, está no meio de um ciclo. Nele, a conservação não se faz resistindo ao tempo, preferindo a imutabilidade da construção, mas, pelo contrário, através de um ritual do tempo, que faz dele o pulsar da continuidade. É uma conservação, não contra o tempo, mas com o tempo, a sua incorporação na relação com o que é da ordem do próprio tempo. Sob certa perspectiva, esta é diferença entre o intemporal e o atemporal. O intemporal interioriza a temporalidade, numa relação viva, que deve ser nutrida, acompanhada e assim pode ser prosseguida, intemporalmente. Bem diferente da relação de força e poder pressuposta no atemporal, resistência à relação viva com o tempo, substituída pela relação pobre de quantidade de tempo, acumulado, de não-relação viva com o tempo. Contam-se os anos, única mudança significativa sore o fundo de imutabilidade, como uma perpetuidade, a espaços a braços com falhas a restaurar, num empreendimento de preseveração.

O “para sempre” bom nunca é o que deixamos no mundo, mas o que o mundo deixa em nós.