Em textos anteriores, usei este espaço para escrever sobre a importância de tentarmos compreender os outros, mesmo os que têm visões do mundo radicalmente diferentes da nossa (como os povos indígenas), e para nos tentarmos compreender a nós mesmos através da visão que eles nos devolvem. Permita-se-me, no que se segue, que revisite de forma oblíqua estes temas, desta vez a propósito da obra “The Dawn of Everything”, escrita por David Graeber  e David Wengrow e publicada em Portugal com o título “O Princípio de tudo – Uma Nova História da Humanidade”.

Narrativas comuns (e opostas) sobre o passado

Graeber e Wengrow assinalam que as nossas representações dos primórdios da Humanidade tendem a cair em narrativas unidimensionais. O exemplo por eles privilegiado (pp. 1-2) é o da origem da desigualdade. Com frequência, transformamos um debate que é, em essência, teológico (os seres humanos são, ‘por natureza’, bons ou maus?, p. 1) numa suposta inquirição sobre o que seria um pré-histórico ‘estado de natureza’. Chegados aqui, a opção que se toma é entre a versão de Rousseau do “bom selvagem” corrompido pela civilização ou a versão hobbesiana de uma “guerra de todos contra todos” que o Leviatã do Estado viria resolver.

Seja qual for a forma como representamos os humanos pré-históricos, em tons de cândida inocência ou brutal violência, aceita-se um conjunto de pressupostos sobre este alegado estado primordial: eram caçadores-recoletores que viviam de uma forma simples, com uma experiência do tempo radicalmente diferente da nossa, e incapazes de deliberação racional no sentido dos sujeitos modernos.

Um golpe de originalidade

O que não acontece frequentemente é que um livro venha, de forma séria, colocar em causa estes e muitos outros pressupostos. Como resumem na conclusão, Graeber e Wengrow apontam para a destruição de teses como “que houve uma forma ‘original’ de sociedade humana; que a sua natureza era fundamentalmente boa ou má; que existiu um tempo anterior à desigualdade ou à consciência política; que algo aconteceu que mudou tudo isto; que a ‘civilização’ e a ‘complexidade’ são sempre conquistadas às custas das liberdades humanas; que a democracia participativa é natural em grupos pequenos mas não pode existir na escala maior de uma cidade ou Estado-nação” (pp. 525-526, tradução minha).

O livro, extremamente ambicioso, recorre a descobertas arqueológicas das últimas décadas, mas geralmente pouco enfatizadas na discussão pública, e introduz nuances e complexidade na descrição das formas sociais passadas.

Ao longo dos seus doze capítulos os autores: tiram o foco da desigualdade, defendendo que, ao focarmo-nos demasiado nela, impedimos transformações sociais mais substantivas pois tornamos uma sociedade sem desigualdades um ideal inatingível (p. 7); mostram a diversidade de formas de vida e organizações sociais que povoaram a terra desde a Idade do Gelo; relacionam a aparição da propriedade privada com os locais considerados sagrados; relativizam a importância da agricultura e da criação das cidades e dos Estados no aparecimento da ‘civilização’ e da sua complexidade; colocam hipóteses alternativas em relação ao surgimento das ideias que associamos tradicionalmente ao Iluminismo europeu, ou de práticas sociais que valorizamos, tais como a democracia ou a habitação social.

Em suma, Graeber e Wengrow fazem por desmontar a estória que nos leva, de forma progressiva, dos clãs de caçadores-recoletores ao capitalismo moderno, passando pela criação do Estado e da propriedade privada, num avanço ‘civilizacional’ que, ao mesmo tempo, traria consigo a complexidade, a burocracia e a desigualdade.

Em alternativa, propõem uma teoria social ancorada na descrição de três “liberdades primordiais”: liberdade de movimento, de desobediência, e de criar ou transformar relações sociais (p. 426), por sua vez ameaçadas por três formas elementares de dominação e exercício de poder (controlo da violência, do conhecimento/informação, e poder carismático, p. 413) e mudam o foco da questão.

Esta passa a ser, nos seus próprios termos, a de se saber por que é que ficámos “encalhados”: como é que, depois de uma panóplia de organizações sociais mutáveis, nos encontramos numa situação de recuo das liberdades primordiais e de incapacidade de imaginação para projetar organizações sociais alternativas – eis uma variação, embora com diagnóstico diferente, da imagem da ‘jaula de aço’ de Max Weber.

Seria impossível um livro tão original e arrojado não se tornar polémico. Não é possível discutir aqui os exemplos dados pelos autores ou as objeções que se levantam às suas interpretações. Enfatizemos apenas mais um contributo para a construção da nossa imagem a partir da sua perspetivação vinda do exterior, naquilo a que Graeber e Wengrow chamam a “crítica indígena”.

Relembremos que, nas suas críticas às sociedades europeias da época, diversos autores do Iluminismo francês recorreram àquilo que geralmente se considera ser um expediente, invocando um ponto de vista estrangeiro a partir do qual era feita a crítica. Talvez o exemplo mais célebre sejam as “Cartas Persas” de Montesquieu, mas Graeber e Wengrow notam que a mesma tática se encontra em Diderot, Chateaubriand e Voltaire.

A opinião comummente aceite é que isto não passava de um truque para conseguir fazer passar as opiniões dos próprios. Mas, neste livro, Graeber e Wengrow formulam a hipótese segundo a qual a obra que originou esta tendência, os “Dialogues avec un sauvage” de Lahontan, teriam sido pelo menos parcialmente baseados (ainda que com exageros e distorções) em diálogos reais com Kandiaronk, um estadista do povo nativo-americano Wendat, que de facto manteve contacto com os franceses e tinha fama de excelente orador. A ser verdade, pelo menos parte das ideias que atribuímos ao Iluminismo europeu poderiam, assim, ter tido uma inspiração indígena direta.

E o futuro?

Tenha isto acontecido ou não, esta crítica continua a ser útil até porque, relembremos mais uma vez, parte da crítica indígena, ainda hoje, ao modo de vida ocidental, centra-se na proteção e respeito devidos à natureza.

No sábado passado esteve no Porto o cacique Odair Borari, chefe do povo de Maró na Amazónia, à conversa com Helena Freitas, sensibilizando para a catástrofe da desflorestação. Alerta que surge quando se têm multiplicado, em Portugal, diversas ações de protesto de ativistas climáticos e na mesma semana em que começou a ser analisado no Tribunal Europeu de Direitos Humanos o caso em que seis jovens portugueses acusam 32 países europeus de não fazer o suficiente para evitar uma catástrofe climática.

A mensagem de Graeber e Wengrow é clara. Se os nossos antepassados pré-históricos tinham vidas mais diversas, e eram mais livres e conscientes do que se supunha, então também não há razão para que nós fiquemos encalhados numa marcha inexorável para a desgraça. É que há alternativas de futuro – tenhamos nós a audácia de as imaginar.