O neto herdeiro chamou outro neto herdeiro e hoje abrem portas escondidas do CCB. Martim Sousa Tavares, neto de Sophia de Mello Breyner Andersen, abre portas ao ciclo de música clássica “Atravessar o Fogo”, dando as boas-vindas a Gabriel Prokofiev este sábado, neto do icónico Sergei Prokofiev.
O ciclo abre-se com identificação e empatia, ao som de música clássica remisturada na cabine de DJ, mas promete muitos mais concertos ao longo dos próximos meses, ocupando uma noite de sábado mensal e convidando todos aqueles que queiram experienciar a música clássica com um copo na mão.
O que é o Atravessar o Fogo?
Quando pensámos, era uma coisa arriscada: o CCB a sair da sua zona de conforto, a fazer concertos fora de horas. São concertos que acontecem aos sábados às 22:30 horas. Temos ainda um concerto até à meia-noite com bar.
Portanto, as pessoas podem estar com uma cerveja na mão, com um copo. Não existem lugares sentados fixos, as pessoas podem estar sentadas ou em pé. O estilo de música também é mais fringe clássica, mas mais na periferia do que o CCB está habituado. Mas agora, quando penso nisso, acho que isto não tem assim tanto risco, porque os concertos são incríveise é um formato que já existe, ou seja, há público para as coisas de sábado à noite basta ir ao Bairro Alto, basta andar pela cidade. Se calhar não havia era esta oferta aqui. Portanto, para o CCB acaba por ser um exercício de disrupção, mas que não o é na cidade de Lisboa. Vendo tudo isto, acho que este é um risco controlado.
Sentimos que o CCB vai fazer uma coisa nova por estas razões, pelo tipo de artistas e música que vai ter, mas acho que à partida isto dificilmente pode correr mal, porque estamos a convidar as pessoas para virem num formato que elas já conhecem de outros sítios, simplesmente não do CCB.
Acho que vai ser só uma coisa muito fixe. Arriscado se for o público de sempre do CCB, se for o público da ópera, opúblico do bailado, mas simplesmente fixe e uma coisa que apetece estar se for malta da nossa idade que gosta de tomar um copo sábado à noite e ver um concerto.
Tens a curadoria deste ciclo a 100%. Como decidiste quem ias trazer?
A pessoa tem sempre algumas cartas guardadas que não sabem bem onde vai jogar. Fui colecionando estas cartas, não todas, porque há coisas aqui pensadas de raiz. Mas já eram ideias que eu pensava sobre fazer um concerto assim, num sítio diferente. Pensei que já tínhamos boas ideias, desafiei os artistas, eles gostaram do conceito e prepararam algo único
Usei algumas boas ideias. Andei a ver os espaços para os concertos, porque não vão ser nos auditórios, mas sim nos lugares de atravessamento. Decidimos os melhores sítios para o tipo de experiência que íamos propor. Foi uma junção deboas ideias que já tinha que foram surgindo graças ao estímulo do lugar.
Começam dia 14 [hoje] e entras a matar.
Por um lado é bom este ser o primeiro concerto, porque é o Gabriel Prokofiev. Sinto algo muito empático em relação a ele, que é toda a gente dizer ‘Ah, ele é neto do Sergei Prokofiev’. Isso acontece comigo a vida toda, ‘é neto de não sei quem’.
Eu sinto o peso que ele carrega aos ombros, porque ele também é compositor. O engraçado é a leveza com que ele joga esse peso, porque ele compõe música clássica, mas também é DJ e produtos, criou a sua própria label. A música clássica que ele escreve já é feita para ser trabalhada a partir de uma mesa de mistura com gira-discos.
Aquilo que vamos ouvir é um quarteto de cordas a tocar uma música clássica que ele escreveu e ele numa mesa de mistura a fazer samples ao vivo e a proporcionar uma experiência quase disco. É um formato muito híbrido.
É a primeira vez que ele vem a Lisboa. Trazer este nome forte, que vem de uma tradição, e vê-lo a sacudir a poeira dos ombros é, de certa forma, um statement deste ciclo: a sua base é música clássica, mas a música clássica pode ser movida de várias formas.
Qual é o concerto com a maior expectativa?
Isto é como escolher o meu filho preferido. Todos têm o seu catch. Mas há um especial que será em sessão dupla: às 22h e meia-noite, que é o da Joana Gama.
Não vai ser um concerto. Vai ser um ritual, uma sessão imersiva com poucas pessoas. Sem fazer spoiler, posso dizer que as pessoas vão entrar noutra dimensão quando vierem a este concerto. Posso dizer que é até ligado ao ocultismo, uma seita que havia no fim do século XIX, que eram os Rosa Crucianos. O Erik Satie, que é o compositor fetiche da Joana Gama, fez parte desta seita e escreveu uma música para a cerimónia.
Não vamos dar mais spoilers deste porque é só no próximo ano.
Há outro em que são guitarras elétricas, que é o último de todos. Vai ser num jardim que não está aberto ao público, o que é muito fixe, porque é mesmo música clássica mas escrita para cinco guitarras elétricas.
Acho graça a estes conceitos porque põem as pessoas a pensar: é rock? É música clássica? Se é, porque é? Apesar de serem compostas para a partitura, não têm de soar a música clássica de Mozart. O interesse é mostrar que a música clássica é muito mais elástica do que aquilo que ainda se pensa que é: ir para um auditório, de folha na mão, aplaudir no sítio certo e saber estar calado. Na verdade, há outras formas de estar.
Isto vindo de um maestro… Estás a desformatar o sistema?
Vindo de um maestro é horrível [risos].
Não estou a tirar o lugar ao formato clássico. Quem quiser continua. O São Carlos não saiu do sítio, a Gulbenkian continua na Avenida de Berna. Ou seja, essas experiências ainda lá estão; isto é só acrescentar mais uma. Há pessoas que vão dizer que odiaram, mas ao menos experimentaram, enquanto outras vão dizer que adoraram e não sabiam.
A minha ideia é essa: abrir portas. Depois as pessoas vão por elas. Esta ideia de deitar abaixo barreiras e desfazer convenções interessa-me muito, sobretudo porque, como dizes, sou maestro, faço concerto de fato escuro e música do século XIX. Também sei o que é esse formato e não quero destruí-lo, quero acrescentar novas camadas.
Sentes um peso diferente ou é-te indiferente por a música clássica ser a tua praia?
A música clássica é o meu saco de pancada. Adoro dar-lhe de todas as formas e efeitos e ver.
Quero mostrar toda a elasticidade que a música clássica tem, todas as formas com que é possível vê-la e que não é apenas uma. Pode ser às 11 da manhã ou à meia-noite, num auditório ou com uma cerveja na não. Quero que mais pessoas digam que se identificam e que é bonito.
Estás a ampliar o leque.
Exato, mas com respeito pelo original. Não estou a desfazer nenhuma das músicas que vai ser tocada neste ciclo vai sofrer pelas circunstâncias. Este ciclo foi pensado com música para aguentar o impacto de não ser tocada num auditório.
Este é um ciclo longo. Quanto tempo pensaste nisto?
São oito meses. Isto começou a ser planeado na primavera. Trouxe algumas ideias que já tinha, e foram relativamente fáceis de montar.
Foram uns três ou quatro meses a planear, fazer convites aos artistas, fazer a calendarização para bater tudo certo porque tem de ser sempre aos sábados. Infelizmente há casos em que o artista quer muito vir mas as datas à disposição não servem e não se pode concretizar. Mas chegámos a julho com toda a programação definida.
Que emoções queres trazer às pessoas?
Há dois caminhos hoje em dia na arte. Há os artistas que pensam que a arte tem de ser uma chamada de atenção, uma coisa muito urgente porque há muitos problemas no mundo, também para acordar as consciências.
Depois há pessoas que não seguem esse caminho porque para isso abrem o jornal ou ligam a televisão. Querem que a arte seja um escape e onde se sintam seguras. Ambas são válidas e gostaria que houvesse um bocado das duas neste ciclo. Estes caminhos são extremos mas há um meio-termo e que sentíssemos um pouco as duas coisas, numa possibilidade de agitar e acordar consciências, das pessoas colocarem o dedo na feria mas também ficarem meia-hora só a ouvirem, em silêncio, música incrível. A minha ideia é que estejam aqui diluídas.
Que público esperas ver?
As pessoas chamam-me porque atraio jovens. Isso está errado. Não posso trazer jovens, não tenho um íman. Posso criar uma programação que também convida os jovens.
Este é o caso mas não quero só jovens. Quero atrair pessoas curiosas e interessadas, independentemente da idade que tenham.
Ficaria mais feliz de ver um público eclético do que pessoal universitário. Sendo que, na música clássica, ver um público jovem é o melhor prémio que podemos conseguir porque é uma música de velhos. É uma coisa uma desejada por todas as salas e orquestras.
Trazer jovens sim, mas não fechar a porta a ninguém. Não apontámos especificamente para um público jovem. Isto não é a Hannah Montana [o melhor dos dois mundos]. Não tem uma faixa etária, é para quem se interessa.
A porta está aberta, as pessoas podem ficar ou ir embora. É fixe o CCB chegar a essa maturidade e estado espírito.
Tagus Park – Edifício Tecnologia 4.1
Avenida Professor Doutor Cavaco Silva, nº 71 a 74
2740-122 – Porto Salvo, Portugal
online@medianove.com