Apresentado e prestes a ser debatido formalmente na Assembleia da República, temos a proposta de Orçamento do Estado para 2024. Aliás, a retoma dos debates quinzenais serviu como uma luva para os diversos partidos da oposição emitirem as suas apreciações genéricas sobre o documento em causa. Negativas, como seria de esperar, em função dos posicionamentos partidários que se vêm cristalizando há já bastante tempo.

Sem embargo de o Orçamento apresentado – prudente e expectável – apresentar pontos naturalmente discutíveis, a mim parece-me que prevaleceu a tendência do dizer mal, “tipo terra queimada”, ou seja, com base em débil argumentação. Parece estarmos condenados a estas “cenas”, aguardando que o debate aprofundado propriamente dito nos traga mais elementos de análise e sobretudo algo que tenha a ver com alternativas credíveis.

Quanto a este Orçamento 2024, relembro os três pilares em que assentou: mais rendimento, mais investimento e melhor futuro.

Como já referi, em artigo anterior, nos dois primeiros pilares está evidenciado algum esforço, mas no último perpassa uma certa “vaguidão” de propósitos, precisamente num momento em que conflitos profissionais de fundo, em áreas tão importantes como a saúde e a educação, condicionam a necessária reorganização eficiente destes serviços públicos. Temas estes que terão de ser consensualmente resolvidos o mais rápido possível, sob pena de o Governo não entregar resultados visíveis em áreas cruciais, sem falar para já na problemática da habitação.

Mas retomemos um dos pilares acima referidos, o investimento, para o qual se prevê um andamento superior ao dos anos anteriores, anos estes em que manifestamente o investimento público executado deixou muito a desejar, com as consequências negativas daí advindas para a qualidade dos serviços públicos.

Mas o que tem de ser exaltado a este propósito é que depara o país com uma oportunidade única – pelas suas características e montantes envolvidos – em matéria de relançamento do investimento, nem mais nem menos consubstanciada no PRR – Plano de Recuperação e Resiliência, a chamada “bazuca europeia”. E não será por mero acaso que estou em crer que uma menos boa execução deste Plano constituirá o verdadeiro calcanhar de Aquiles do Governo, aliás, como o próprio Presidente da República não deixa de, mais ou menos camufladamente, fazer lembrar

Talvez valha a pena alinharmos umas considerações a este respeito.

O PRR – iniciativa da União Europeia num período depressivo aquando da pandemia – permite apoiar investimentos e reformas numa lógica mais de reestruturação e modernização das economias a médio prazo, atingindo em Portugal, para o período 2021/2026, o valor global de 16,6 mil milhões de euros (recentemente reforçado graças a uma reprogramação também assente no cumprimento das metas e marcos inicialmente traçados), sendo 84% desse valor assumidos como subvenções e apenas 16% como empréstimos.

Facilmente se infere que se trata de uma oportunidade única para a reestruturação e modernização dos serviços públicos e de certas infraestruturas estratégicas (o foco do Plano incide, de facto, sobre o sector público), mas também pode aportar às empresas (embora com uma fatia de 30%) uma acrescida capacidade para se tornarem mais competitivas, gerando valor acrescentado com maior produtividade e oferta de trabalho qualificado.

E, embora a fatia destinada diretamente ao tecido empresarial privado seja de menor monta, não pode ser esquecido o efeito alavancador que um “bom investimento público” aportará ao próprio funcionamento das empresas, em geral. Aliás, de um pacote global previsto inicialmente no programa, informações recentes apontam que já foram aprovados cerca de 14,5 mil milhões de euros, o que, tendo em conta o horizonte temporal até 2026, se afigura como um patamar interessante.

Contudo, até finais de Outubro de 2023, o valor acumulado de pagamentos desembolsados, seja a título de adiantamentos ou a título de reembolso de despesas efectuadas, no âmbito da execução dos projectos de investimento, aos diversos beneficiários (autarquias, áreas metropolitanas, empresas, universidades, IPSS, e outras instituições públicas e privadas candidatas), terão atingido apenas 4,5 mil milhões de euros, ou seja uma percentagem baixa do pacote global.

Ora, sabe-se que o Governo tinha previsto que o valor destes pagamentos fosse nesta altura significativamente superior, mas tal ocorre pelos vistos não por falta de liquidez mas sim pelo falta de pedidos de pagamento por parte dos promotores seja, como se disse atrás, a titulo de adiantamentos ou de reembolso de despesas já efectuadas (algo que deve ser confirmado e mais explicitado).

A questão que se coloca – e o debate público à volta dela deve ser mais aprofundado e transparente dada a relevância estratégica decisiva deste programa – é a de saber se o Governo tomou todas as medidas necessárias ao seu alcance para acelerar pagamentos, tendo em conta o modelo de governação do PRR. Isto, com níveis de coordenação política, de acompanhamento, de coordenação exclusivamente técnica e de auditoria e controle.

No fundo, uma máquina gigantesca, necessariamente burocrática, que se pretende subordinada aos princípios da simplificação, da transparência, da prestação de contas, da centralização da gestão versus descentralização na execução, da orientação para resultados. Acresce que estão envolvidas cerca de 70 entidades da administração pública na avaliação das candidaturas, no acompanhamento e nos pagamentos aos promotores.

Face à relevância de uma oportunidade única como o PRR, torna-se essencial que esta temática seja publicamente mais debatida não só quanto ao grau de execução global, mas também a nível da tipologia dos projetos envolvidos (enquadrados nas áreas da resiliência, da transição energética e da transição digital). Também seria útil existir informação sobre projetos há muito existentes na carteira de certos ministérios e que vão ser agora executados sob o chapéu do PRR.

Para mim, volto a insistir, é este um dos mais proeminentes calcanhares de Aquiles do Governo. É o reforço da competitividade da economia portuguesa e o adequado funcionamento de serviços públicos basilares que estão em causa. Uma má avaliação da execução deste PRR – sendo certo que vai até finais de 2026 – é como que uma machadada na avaliação da performance deste Governo!

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.