Que raio de situação haveria de ocorrer precisamente a uns breves meses da comemoração dos 50 anos do 25 Abril, com um primeiro-ministro com maioria absoluta a demitir-se na sequência direta de um “parágrafo assassino” dum comunicado da Procuradoria-Geral da República/PGR, que permitiu especular sobre um potencial envolvimento do primeiro-ministro num processo judicial em curso!
Dir-se-á que é a justiça a funcionar e aí tudo bem. Mas o que saiu cá para fora – e é sempre assim em matéria do suposto segredo de justiça – é apenas uma parte dum processo mais lato (lítio, hidrogénio e centro de dados), com detenções e buscas a um número significativo de agentes envolvidos sendo que as conclusões/decisões assumidas pelo juiz de instrução nesta fase do processo vão ao arrepio das propostas aparentemente exageradas do Ministério Público.
O certo é que temos uma demissão do primeiro-ministro, cujo Governo já passou por situações complicadas de casos e “casinhos”, por arrufos institucionais com o próprio PR e, sejamos verdadeiros, com um fraco pendor reformista face às necessidades que o país enfrenta. Não podemos, contudo, esquecer a gestão pontual levada a cabo para acorrer a situações de emergência, designadamente aquando da pandemia, mas também numa conjuntura de surto inflacionista potenciado pela guerra na Ucrânia, na medida em que o Governo teve a sensibilidade social que a situação exigia, naturalmente com os escassos meios ao dispor e por isso rotulados de insuficientes.
Mas – e apesar dos indicadores macroeconómicos até serem de feição, com destaque para o nível de emprego e mesmo com um Orçamento prudente, mas apontado para aumento de rendimentos – ia já faltando ao Governo um fôlego que acalentasse uma visão mais estratégica. Mas, mesmo assim, o horizonte de 2026, que após todas as confusões parecia consensualizado, de repente soçobra.
Claro que a decisão ética e política foi do primeiro-ministro, porém, a causa próxima não pode deixar de estar ligada a um comunicado da PGR com umas palavras a mais no que toca à previsibilidade das suas consequências. Como se viu!
Posso até admitir, especulando, que no caso do primeiro-ministro juntou-se a “fome à vontade de comer”, tal seria o seu cansaço e, porque não, o cansaço que o próprio PS tinha dele após oito anos de governação. O ar comicieiro e entusiasta vivido na apresentação da candidatura de Pedro Nuno Santos ao cargo de secretário-geral do PS fundamenta esta minha mera suposição ou, se quiserem, especulação.
Em suma, um primeiro-ministro visivelmente em fim de ciclo e um Ministério Público a aparentar uma propensão de protagonismo (bem alimentado por certa comunicação social), como já terá demonstrado em situações anteriores independentemente da maior ou menor justeza das suas investigações, facto que poderia merecer algumas reflexões, mas no local próprio e por quem disso tem o necessário know-how.
Vamos, pois, focar-nos nas consequências que afetam o normal funcionamento do sistema político, tendo em consideração que a marcação de eleições antecipadas pelo PR para o distante 10 de Março tem como enfoque, fatalmente, a busca dum novo rumo e equilíbrio político. Mas tal não será fácil. Vejamos.
À direita – como me causa incómodo ter que esgotar o sistema político e sobretudo os cidadãos eleitores nas “categorias puristas” de esquerda e direita! – o candidato a primeiro-ministro do PSD será agora, sem dúvidas, Luís Montenegro, sendo que mesmo nesta situação critica conjuntural o partido teima em não descolar nas sondagens. E, sobretudo, está fortemente entalado pela direita radical do Chega que cresce eleitoralmente capturando tudo o que é descontente (e com pouca formação política, direi, num claro aviso aos tradicionais partidos centristas moderados).
Põe-se a hipótese duma pré coligação eleitoral do PSD com a IL e o frágil CDS. Mas a IL quer medir bem o que vale – e compreende-se – e esta solução face ao crescimento do Chega até pode não ser suficiente para uma maioria alternativa.
À esquerda – manter-se-ão os estilos habituais- duros, algo radicais designadamente quanto a pilares básicos da política externa, mas se necessário também com algum pragmatismo – por parte do BE e do PCP. Por sua vez, a força agregadora desta grande zona que tem sido o PS está envolvida numa luta eleitoral interna, cujo desfecho parece estar inclinado para Pedro Nuno Santos, com a participação doutro candidato dito mais moderado a servir para melhor legitimar a vitória dentro do PS – Pedro Nuno Santos, que é um cúmplice e apoiante da chamada geringonça, mas sobretudo empenhado numa vitória clara do PS. Daí que não seja de estranhar no seu discurso, para já, alguma viragem ao centro.
Deve, entretanto, ser realçado que a expressão eleitoral de qualquer dos partidos ditos alternantes deve atingir valores suficientemente distanciados do somatório dos partidos do seu bloco político como prova efetiva da respetiva liderança. Tal acontecerá pela certa no PS (pese embora a débil sustentabilidade a prazo da aliança, estou em crer), residindo muitas dúvidas no espectro da direita sendo o “papão” claramente o Chega, com o qual o PSD e o seu líder declararam não fazer qualquer entendimento. Estamos, pois, presentes perante uma situação polarizada.
A meu ver, na actual situação interna e também na incerta conjuntura externa, onde as expectativas duma recessão geral não são de excluir, a gestão governativa do país deveria assentar em bases sólidas de consenso para duma vez por todos se assentar e se acelerarem reformas estruturais em áreas dita chave, e tal só será possível se os dois maiores partidos – que se encontram ambos ameaçados por pulsões radicais- conseguissem chegar a um entendimento mínimo.
Não se trata de um governo de bloco central, mas sim de acordos que assegurem que quem vencer as eleições possa ver o seu governo viabilizado e amarrado a um conjunto de reformas consensualizadas com o partido digamos derrotado.
Em minha opinião, tal não constitui qualquer perda abrupta de influência do partido não vencedor pois o que ganhar as eleições fica sempre condicionado pela vontade política do outro, e tudo isto com a garantia de respeito pelos acordos de regime que previamente tiverem celebrado pós-eleições. A meu ver, o país precisa disto duma forma temporária q.b., a fim de assegurar uma estabilidade real que assegure a viragem para um novo ciclo.
Mas a realidade futura não vai, pela certa, ser esta. O PS de Pedro Nuno Santos sempre tentará coligar-se com partidos à sua esquerda caso tenha condições governativas para tal, e nunca declarará que um PSD vencedor terá o apoio do PS para viabilizar governo (e assim afastar o Chega da equação). Aliás, aqui nem sequer foge formalmente (e talvez não em conteúdo) das posições de António Costa quando afirmou, alto e bom som, que “quando precisar do PSD, o Governo acaba”.
São as rivalidades sempre à flor da pele, mas francamente não estamos a lidar com campeonatos de futebol, dum Benfica- Sporting ou do Benfica- Porto. Para manter os posicionamentos e princípios-base destes dois partidos alternantes e, mesmo assim serem possíveis pontes de entendimento, são necessários líderes doutra temperança, como tivemos no passado, embora reconheça que as condições de fanatismo também transpostas para o simples eleitor são hoje mais bloqueadoras.
Entretanto, e mesmo com o Orçamento 2024 aprovado, falta resolver assuntos pendentes no imediato (v.g. a questão das urgências e a reivindicação dos professores, uma boa execução do PRR) e, sobretudo, o início da implementação de reformas mais estruturais, seja no domínio da saúde habitação, escola pública, inovação e investigação, justiça, administração pública em geral, sistema fiscal específico… Reformas estas que estão por iniciar ou carecem de retoma urgente.
É que em nome dum desejado crescimento económico mais agressivo e sustentado, e dum mais sólido Estado Social, não podem deixar de ser concretizadas com uma urgência compatível. A ver vamos se o país não poderá vir a cair noutro pântano político!
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.