Passados dez dias da fantástica conferência de imprensa de Emília Cerqueira, deputada do PSD que validou “inadvertidamente” as presenças do secretário-geral do seu partido na Assembleia da República (AR), já ninguém se lembra deste episódio. Sabem, é que, entretanto, o Bruno de Carvalho e o Mustafá foram passar umas noites à esquadra e a malta, sempre com as prioridades bem definidas, focou-se no que realmente interessa. Mas eu acho que, se calhar, seria importante revisitar esta ocorrência. Não pela história em si, mas pelo que representa no conjunto de palhaçadas a que chamamos de “Parlamento”.

No caso específico, que culminou no mea culpa solitário de Emília Cerqueira, o problema parece ter sido a partilha de documentos de trabalho, que fez com que a deputada, sabendo a password de José Silvano, acedesse ao computador deste e, assim, registasse a presença do colega. Justificações dadas, “nothing to see here”… e a vida parlamentar segue como se nada fosse. É uma sequência de eventos demasiado recorrente na AR, espaço que deveria ser a casa da democracia portuguesa, mas que, como tantas outras casas em Lisboa, raramente é ocupada de acordo com o seu potencial.

Examinemos: temos deputados que recebem reembolsos por viagens pagas pelo Estado (e ainda têm a lata de se escudar na lei); há uma Entidade de Contas sem recursos para fiscalizar o órgão que determina o seu orçamento (como se quem decidisse o financiamento da PJ fosse a Associação Nacional de Dealers e Ladrões); as novas leis de financiamento dos partidos foram aprovada pela calada, envolta em segredo e zero transparência; os deputados dão moradas falsas, justificações falsas e, agora, presenças falsas.

O curioso é que nada muda. Quando Carlos César fez finca-pé que não cometera nenhuma ilegalidade ao receber um reembolso por uma viagem já paga, não vi nenhuma demonstração pública de desagrado, uma manifestação colectiva dos portugueses honestos que pagam do seu bolso a sua deslocação diária casa-trabalho a pedirem que este deputado (que até é líder de bancada) fizesse o mesmo; também não vi nenhuma corrente no Facebook, como a que criaram para defender um madeirense que não sabe o que significa consentimento, a pedir que Emília Cerqueira se demitisse por não saber as implicações das suas acções na Assembleia e, portanto, ser manifestamente incompetente para desempenhar as funções de deputada; e o mesmo seria válido para as restantes situações que enumero.

David Dinis e Paulo Ferreira fazem excelentes retratos do que está errado no sistema político português, sugerindo algumas alterações que me parecem acertadíssimas, abrangendo desde a formação das listas de cada partido até à partilha de informação entre bancadas. Ambas as crónicas assentam em dois valores que escasseiam em Portugal e são, para mim, fulcrais para o nosso desenvolvimento: coragem e exigência.

Coragem para apontar o dedo às fantochadas que todos os dias acontecem (faltas recorrentes de uma percentagem considerável do plenário, votos fantasma, ordenados de deputados que duplicam com apoios e subsídios) e para as corrigir, deixando quebrar os telhados de vidro que protegem os que mais enriquecem com o lodo que é a governação portuguesa, e substituindo esta impunidade por exigência real, substituindo regras que raramente serão cumpridas por avaliações ao trabalho dos deputados, com a optimização dos conhecimentos destes em Comissões específicas – ao invés dos debates enfadonhos e ocos da generalidade, que se centram num “a culpa é tua” de lado a lado.

Infelizmente, para tais mudanças acontecerem seria necessário um povo interventivo, crítico, que tivesse vontade e capacidade de examinar os problemas do país. Ao invés, temos um povo inerte, lento, a quem interessa mais cores partidárias ou futebolísticas. E, se já é difícil ter uma democracia saudável quando os eleitos não querem ser escrutinados, torna-se impossível quando os eleitores se estão marimbando para escrutinar.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.