As opiniões dividem-se sobre quem terão sido os mandantes do ataque ao centro de concertos Crocus, em Moscovo, no dia 22 de março, que causou a morte de 133 civis. Quando se esperava que desse as condolências e se disponibilizasse para cooperar com as autoridades russas, a embaixada norte-americana em Moscovo centrou a sua ação em ilibar Kiev de qualquer envolvimento, atribuindo de imediato a responsabilidade ao Estado Islâmico – Korasan (EI-K), não tinha decorrido ainda uma hora desde o início do ataque,
Noutro sentido foi a posição russa. Passados quatro dias, na sequência da reunião do Comité de Investigação criado para averiguar a ocorrência, Nikolai Patrushev, secretário do Conselho de Segurança da Rússia, e Alexander Bortnikov, diretor da agência de informação interna russa (FSB), vieram apontar o dedo a Kiev introduzindo um dado novo e incontornável no debate.
Segundo este último, “a ação foi preparada pelos próprios radicais islâmicos e, claro, facilitada pelos serviços especiais ocidentais [leia-se norte-americanos e ingleses], e os próprios serviços especiais ucranianos têm uma ligação direta a esta situação”.
Os analistas e a comunicação social dividem-se em dois grupos, consoante o campo em que se situam.
Um grupo associa-se à posição norte-americana e afirma que: a Ucrânia não tem a ver com o ataque, atribuindo exclusivamente a responsabilidade ao IS-K; os russos foram informados pelos norte-americanos do ataque, mas foram negligentes; Putin precisava de um pretexto para escalar a crise na Ucrânia.
O outro grupo aproxima-se dos argumentos russos considerando que: os serviços de inteligência ucranianos e de países estrangeiros estão envolvidos, referindo-se aos norte-americanos e ingleses; e a embaixada norte-americana não teria partilhado informação suficiente sobre a ameaça pendente.
O facto de não nos encontrarmos em condições para apontar o dedo seja a quem for, não nos permite descartar qualquer possibilidade, não por uma questão de dúvida sistemática, mas porque há factos que não podem ser desconsiderados e devem, por isso, ser introduzidos na análise.
Alguns analistas referem que o ataque terrorista estava para ocorrer no dia 8 de março, no Dia Internacional da Mulher, um feriado muito importante na Rússia. A ter sido nesse dia, uma semana antes das eleições presidenciais russas, o efeito político teria sido demolidor. A forte presença policial terá desincentivado o ataque.
Outras fontes referem que o principal impedimento para a realização do ataque nessa data terá sido a demissão de Victoria Nuland, uns dias antes (5 de março). Alguém de peso no Departamento de Estado terá ficado muito preocupado com a gravidade das suas declarações, ao anunciar publicamente uma atribuição de verbas adicional para que Putin viesse a ter “nasty surprises”. Apesar dessa contrariedade, e à revelia de Washington, os ucranianos terão decidido avançar, mesmo tendo a operação deixado de fazer sentido.
Muita coisa não bate certo neste ataque. Os terroristas tiveram um comportamento nada consistente com as práticas dos seus correligionários suicidas do IS-K. Afinal, não eram motivados pelo martírio: mostravam mais interesse nos dólares do que no descanso eterno junto das 72 virgens; não transportavam consigo cintos com explosivos para se fazerem explodir; e deixaram-se prender.
Nesta síntese argumentativa, não podemos deixar de referir a ligação conhecida e pública da Ucrânia a vários grupos jihadistas. Alguns deles combatem em unidades constituídas, inseridas nas forças armadas ucranianas, na linha da frente contra as forças russas. Como se isso não bastasse, Kiev tem dado guarida a conhecidos comandantes terroristas.
Como diz o ditado popular, “não basta a mulher de César ser séria. Tem também de o parecer”. O general Budanov, chefe dos serviços de inteligência militar, anunciou publicamente, em fevereiro de 2024, numa entrevista, ser objetivo da Ucrânia atacar a Rússia na sua profundidade.
Este ataque em Moscovo segue-se à destruição de uma infraestrutura russa – o Nordstream – da mais elevada importância. Tudo se complicará caso se venha a provar ser verdadeira a pista ucraniana. A Rússia terá de apresentar publicamente provas inquestionáveis. Falamos nesta altura da ultrapassagem de duas linhas vermelhas, uma situação intolerável para o Kremlin.
Se, no primeiro caso, Moscovo não fez nenhuma acusação direta, agora foi muito explícito acusando a Ucrânia de mandante, apoiada pelos Estados Unidos e pelo Reino Unido. Isto significa uma alteração qualitativa do discurso que não pode ser desvalorizada. Afinal, o Crocus poderá vir a ser considerado como mais um ataque de uma série de ataques terroristas à Rússia.
Entretanto, fomos surpreendidos por uma inusitada entrevista à ICTV, um canal ucraniano de televisão privado, no dia 27 de março, dada pelo General Vasyl Malyuk, chefe do serviço de segurança ucraniano (SBU), em que falou abertamente sobre todas as operações contra a Rússia levadas a cabo pelos seus serviços, reivindicando sem necessidade alguma a autoria dos vários assassinatos perpetrados no interior da Rússia, contra personalidades russas pró-Kremlin, como Darya Dugina, Vladlen Tatarsky, Zakhar Prilepin, etc. Malyuk implicou diretamente a Ucrânia em ações de terrorismo.
Na sequência destas declarações, o Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia fez um ultimato à Ucrânia exigindo a extradição para a Rússia do general Malyuk e de outros suspeitos, que Kiev rejeitou. Sublinhe-se que esta reação de Moscovo tem lugar depois do atentado terrorista do dia 22 de março, e que não está diretamente relacionada com ele, mas sim com as declarações de Malyuk.
Isto coloca outro tipo de questões. Existem precedentes de países que invadiram outros pelo facto de albergarem terroristas, que cometeram atos terroristas nos seus territórios contra os seus cidadãos. A invasão norte-americana do Afeganistão prende-se com a não extradição de Bin Laden, o que foi considerado um ato de guerra.
Não é o caso da Ucrânia, porque as forças russas já se encontram em território ucraniano, mas tudo indica que caminhamos para um aumento significativo da escalada. O facto da Ucrânia albergar terroristas que cometeram atos terroristas em território russo contra cidadãos russos confere a Moscovo o direito de ir atrás desses terroristas.
A Ucrânia foi sujeita durante cerca de uma semana a ataques aéreos intensos e sistemáticos que se estenderam por todo o território, dirigidos fundamentalmente a infraestruturas energéticas. Ao contrário dos ataques do ano passado, dirigidos à rede de distribuição elétrica, agora foram às próprias centrais elétricas. Os efeitos estão a ser devastadores e a recuperação vai ser tremendamente morosa. Várias cidades estão às escuras.
Apesar de alguns destes ataques terem tido lugar após o ataque terrorista em Moscovo, a sua conceção estava subordinada a um planeamento estratégico com vista à preparação de operações futuras. Não foram uma resposta ao ataque terrorista em Moscovo. A resposta a este último foi bastante modesta e limitou-se à destruição dos quartéis-generais das organizações da inteligência ucraniana em Kiev, assinalando Moscovo estar ciente de quem foram, para ela, os mandantes do ataque terrorista.
Encontramo-nos, pois, num momento de elevada expetativa estratégica. Depois de altos dignitários russos acusarem publicamente a Ucrânia, os EUA e o Reino Unido, o Kremlin tem obrigatoriamente de fazer qualquer coisa. Esse imperativo agrava-se após a entrevista de Malyuk, o ultimato para a sua extradição e a resposta negativa de Kiev. Se não fizer nada, o Kremlin desacredita-se internamente onde muitas vozes pedem que se arrasem os edifícios do poder ucraniano, e, externamente, dando razão àqueles que forçam a ultrapassagem das linhas vermelhas, porque os russos têm medo e vão conter-se.
Está por saber se os russos não falaram de mais. Veremos qual será a resposta de Moscovo. Haverá uma resposta massiva e demolidora ao alegado atrevimento de Kiev? Talvez por isso, começámos a ver o Presidente Zelensky a discursar a partir do bunker. Falta-nos saber o que o Kremlin e a Casa Branca andam a falar por detrás das cortinas e que nós não ouvimos.