A menos de um mês para as eleições do Parlamento Europeu, vemos os estados –membros da organização confrontados com inúmeros desafios. Preocupações antigas e espelhadas nos muitos acordos que a União Europeia (UE) foi gizando com outras partes do mundo, tornaram-se parte da discussão interna nestes estados. Entre estes temas, talvez aquele que mais se destaque seja o das migrações, mas existem outros que vão desde as estratégias de reindustrialização da Europa até aos problemas da autonomia alimentar ou energética.

Num contexto internacional cada vez mais complexo, surge com alguma normalidade o acendimento de muitas questões adormecidas no período em que se acreditava que a globalização e a interdependência por si só assegurariam tempos de paz. É certo que as relações comerciais estreitas entre diferentes partes do mundo tornam os cenários de paz mais atrativos. Como também é verdade que as interdependências geram uma maior integração dos mercados e um interesse acrescentado na estabilização das cadeias logísticas.

No reino da imprevisibilidade

Num cenário de imprevisibilidade tudo se transforma. Estes novos enquadramentos surgem por questões diversas, que se estendem das alterações climáticas aos problemas de conflitos que surgem ou ressurgem e afetam o contexto internacional.

As disrupções de segurança das rotas marítimas, por onde se faz a esmagadora maioria do comércio, no caso do Canal de Suez, devido aos ataques houthis, e no caso do Canal do Panamá por consequência da seca que não alimenta suficientemente o canal para garantir a passagem regular dos navios de maior porte, são exemplos de cenários que rompem com a normalidade e afetam as cadeias que asseguram mercados fluidos e integrados.

A estas possibilidades podem-se adicionar outras, como as questões que surgem da competição tecnológica e comercial, e que se refletem nas relações políticas. A globalização foi gizada como um processo de raiz económica que, tradicionalmente, favorecia determinados estados em detrimento de outros. Todavia, acabou por favorecer geografias até então menos influentes no quadro internacional. A dimensão dos seus mercados internos, a sua capacidade de formar e especializar mão de obra e, sobretudo, de se tornarem essenciais num processo de incremento das interdependências trouxe algumas surpresas e reequilíbrios na relação de forças da globalização.

Alguns estados tornaram-se potências regionais, como o Brasil, a Índia ou a Turquia, para mencionar apenas alguns. Outros perceberam, atempadamente, que tinham nas suas mãos a chave para uma das transições essenciais para o mundo contemporâneo, como é o caso da Arábia Saudita, dos Emirados Árabes Unidos ou mesmo da Rússia. Houve ainda o caso de uma potência em que do âmbito regional se tornou um ator global, como a China.

Estes novos cenários políticos agitaram as águas europeias (e não só) e abrem novos debates até há poucos anos impensáveis. A Europa, habituada nos últimos séculos a liderar os processos transformativos da Ordem Internacional e ainda se constituir enquanto ator global, depara-se com o facto de, provavelmente, ter que partilhar essa liderança com estados fora da chamada tradição “ocidental”.

Estes estados que agora se perfilam para ser parte de um mundo multipolar e propondo novas formas de multilateralismo ou, pelo menos, de orientação desse multilateralismo, são em boa parte estados resultantes de processos coloniais, como são os casos da África do Sul, do Brasil ou da Índia, e outros resultam de impérios fora deste espetro, mas que durante séculos dominaram vastas regiões, como é o caso da China, da Rússia ou da Turquia.

Entre o debate interno e a guerra

Outro aspeto dilacerante na Europa é a invasão da Ucrânia pela Rússia e a guerra que a partir daí se manteve. Apesar do apoio à Ucrânia por parte dos estados-membros da União Europeia, o país não logrou uma vitória militar, nem conseguiu uma negociação diplomática que permitisse dirimir o conflito com condições aceitáveis para as partes.

A UE tornou-se espetadora de uma guerra perto das suas fronteiras que levantou preocupações com a sua política de defesa, tema que, aliás, vinha surgindo no debate europeu em tempos ainda de paz. Apesar da necessidade de se articular uma política de defesa comum, até porque as questões de defesa ligam-se diretamente com as questões económicas e a proteção de rotas e de parcerias estratégicas, este debate surge pela identificação de uma ameaça comum.

No caso da guerra em Gaza, que trouxe impactos diretos à segurança económica da Europa e que no futuro também trará muitos desafios à segurança em termos gerais, o assunto parece ser um tema relegado para segundo plano. Como se a sua proximidade através do Mediterrâneo às fronteiras europeias não fosse, só por si, um indicador de incremento de volatilidade da segurança, mesmo sem olharmos para o maior drama humanitário a que já assistimos no século XXI.

Esta perspetiva de ameaça aparece dispersa em muitos campos e não apenas no militar, e é muitas vezes direcionada e seletiva. Por exemplo, as migrações são percecionadas como ameaça, a competição tecnológica também assim é vista. E, embora, estes elementos possam constituir elementos de ameaça, estes encontram-se em diferentes níveis de governação e de entendimento comum entre os estados da União Europeia. Por isso, nos debates eleitorais é fácil instalar-se a confusão sobre o que os eurodeputados poderão fazer no âmbito do Parlamento Europeu e quais os verdadeiros riscos do crescimento do populismo extremista no parlamento.

Que Europa queremos?

A grande questão que se coloca é que Europa os cidadãos da União querem. Uma Europa de valores democráticos e direitos humanos, com capacidade de agir enquanto ator global e de disseminar esses valores de forma equivalente por todas as geografias? Ou uma Europa fortificada e, por consequência, com riscos de isolamento?

Não é fácil decidir, até porque as experiências e história dos nossos diversos países nem sempre nos aproximam. O caminho para o aprofundamento político da União Europeia, em que se inserem política externa e de defesa concertadas, traz desafios de convergência enormes que precisam de ser debatidos seriamente.

Assim, estas eleições para o Parlamento Europeu, em tempos de imprevisibilidade, revestem-se da maior importância, mas também exigem um debate sério sobre as políticas defendidas pelos candidatos a deputados. E, nesse debate sério, deverão estar diversas questões.

Por exemplo, como se pretende articular a Europa social num contexto de competição tecnológica e económica? Como se constrói um mecanismo de defesa comum que, mais do que na guerra e na ameaça, também se foque na manutenção da paz e no desimpedimento das rotas comerciais? Como defendemos os direitos humanos e as democracias em contextos diferentes? Como nos posicionamos perante os diferentes conflitos internacionais? Assumimos divergências no nosso posicionamento relativamente aos conflitos em curso? Como podemos construir uma reindustrialização europeia, num contexto de escassez energética na Europa?

Até agora, o vigor da União Europeia encontrou-se exatamente na defesa dos seus valores, mas também na adaptação aos novos tempos, sem deixar cair o seu ideário principal, uma Europa pacífica, baseada nos valores humanitários e na defesa intransigente de uma maior justiça internacional.

Aí os populismos não encontram espaço para sobreviver e a União Europeia voltará a ter o respeito internacional pelo qual se pautou até hoje enquanto ator global internacional. São os termos da construção deste ideário que deveriam estar agora em debate para que se vote em consciência. Estes são os verdadeiros dossiês que determinarão o futuro ou falta deste nesse sonho europeu que nos trouxe paz, desenvolvimento e, também, direitos sociais e culturais.