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Patrícia Martins: “Temos uma sociedade estruturada na exploração do trabalho das mulheres, gratuito e invisibilizado”

Ativista da Rede 8 de Março que está a organizar a Greve Feminista em Portugal sublinha que “há problemas sérios de desigualdade, exploração e opressão” das mulheres, com epicentro na “violência e justiça machista”. E antecipa: “Se nós pararmos, o mundo pára também”.
17 Dezembro 2018, 14h37

No relatório da Amnistia Internacional sobre “os direitos humanos que ainda não se podem comemorar em Portugal”, apresentado no 70º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, sublinha-se que “as mulheres continuam a ser as mais afetadas pela violência de género”. Com tradução prática no aumento do número de femicídios em 2018, no facto de o número de condenações por violência doméstica ser residual quando comparado com o número de participações registadas pelas forças de segurança, ou nos estereótipos de género patentes em acórdãos de tribunais relativos a casos de violência sexual. Este relatório torna mais premente a realização da Greve Feminista em Portugal, convocada para o dia 8 de março de 2019?

O relatório da Amnistia Internacional torna visível dois problemas fundamentais que as mulheres enfrentam no nosso país: violência e justiça machista. Estamos muito conscientes deles, tanto que para os combater as mulheres tomaram várias vezes o espaço público, denunciando a desigualdade, a violência e o assédio, a justiça machista e reclamando o seu lugar por inteiro no mundo da cidadania e dos direitos, nomeadamente o direito a não morrer às mãos de um agressor. Nos últimos anos, são as manifestações contra as diversas formas de violência machista que têm tido maior expressão e uma maior reação social em Portugal. Se a violência, na maioria dos casos, é contra as mulheres, também caminhamos no sentido de uma feminização da resistência à violência estrutural que afeta sobretudo as mulheres.

Desde 2016 que os movimentos internacionais feministas – tais como o as segundas-feiras negras na Polónia; o movimento “Ni una Menos” da América Latina; “Women’s March”, o manifesto “Feminismo para as 99%” e a campanha “Me Too” iniciadas nos Estados Unidos da América; a “Huelga Feminista” em Espanha – têm sido fundamentais no fortalecimento das redes feministas em Portugal e na definição das nossas ferramentas de intervenção política. Isto é, no próximo dia 8 de março de 2019, queremos parar porque sabemos que uma Greve Feminista é uma forma de fortalecer uma maioria: as mulheres. É um instrumento social e político para a sua emancipação.

 

O manifesto da Greve Feminista estabelece quatro planos de ação: “Faremos greve ao trabalho assalariado, ao trabalho doméstico e à prestação de cuidados, ao consumo de bens e serviços e greve estudantil”. Porque é que optaram por múltiplas formas de protesto? Para realçar que a desigualdade de género é um problema estrutural e transversal na sociedade portuguesa, não se cingindo apenas à vida laboral das mulheres?

A Greve feminista tem o objetivo de tirar de debaixo do tapete as diversas desigualdades e violências que as mulheres enfrentam. Como elas são várias, os eixos em que a Greve se constrói também o são, exatamente para demonstrar que não são casos pontuais, mas que fazem parte da forma como a nossa sociedade se estrutura. A Greve procura visibilizar as 24 horas de cada dia. Todas as mulheres trabalham, umas fazem-no no setor formal e enfrentam a desigualdade salarial e a pressão sobre as suas escolhas quanto à maternidade; outras trabalham no setor informal, sem contrato e sem direitos, e enfrentam remunerações abaixo do permitido por lei e nenhuma proteção social. Todas acumulamos o trabalho fora de casa com o trabalho doméstico e dos cuidados, o que nos rouba tempo de descanso, lazer e disponibilidade para a formação contínua, seja profissional, seja motivada por outros interesses pessoais.

A sociedade de consumo reconhece-nos como consumidoras e não como cidadãs, propagando uma cultura machista que, sustentada em estereótipos, retalha os nossos corpos e as nossas identidades, nos impõe medidas-padrão e ideais de beleza, colonizando as nossas vidas e os nossos corpos, inculcando um estado de guerra permanente entre aquilo que somos e queremos ser e aquilo que esperam que nós sejamos. Nas escolas, continuamos a conhecer apenas uma parte da História. Não conhecemos a nossa História, porque os currículos nos invisibilizam. A tudo isto se soma a praxe, que é sempre violenta, exatamente porque a violência não é apenas física. As ideias que se veiculam nas praxes são machistas, diminuem as mulheres, achincalha-nos e no meio daquilo que designam como “brincadeira”, os estereótipos e os preconceitos fazem o seu caminho naturalizando-se.

 

“A sociedade de consumo reconhece-nos como consumidoras e não como cidadãs, propagando uma cultura machista que, sustentada em estereótipos, retalha os nossos corpos e as nossas identidades, nos impõe medidas-padrão e ideais de beleza, colonizando as nossas vidas e os nossos corpos, inculcando um estado de guerra permanente entre aquilo que somos e queremos ser e aquilo que esperam que nós sejamos”.

 

A desigualdade de género no trabalho assalariado, sobretudo ao nível dos salários, progressão na carreira, acesso a cargos dirigentes, é um fenómeno mais tangível e passível de ser debelado através de políticas públicas, ou através de leis. O mesmo não se aplica ao trabalho doméstico, na medida em que se trata de uma desigualdade consentida pelas mulheres (ou seja, ninguém é obrigado a viver com outra pessoa que não partilha as tarefas domésticas). Como é que se poderá agir relativamente a este problema no âmbito da implementação de políticas públicas?

Discordo da ideia de desigualdade consentida. Para haver consentimento, pressupõe-se que houve debate e negociação, mas a nossa experiência é bem diferente. A assunção das tarefas domésticas e do cuidado por parte das mulheres não resulta, na esmagadora maioria das vezes, de uma escolha, mas de uma tradição profundamente machista. A vida não é tão simples que nos permita aceitar o argumento de que “ninguém é obrigada a viver com quem não partilha as tarefas domésticas”. É um argumento falacioso, como o é a sua adaptação aos contextos de violência doméstica: “ninguém é obrigada a viver com um agressor”. A desigualdade não é consentida, está é naturalizada. E muitas vezes esses processos de naturalização até vêm embrulhados em discursos supostamente elogiosos, aqueles que destacam a particular aptidão das mulheres para o trabalho doméstico e do cuidado.

No entanto, o que temos é uma sociedade estruturada na exploração do trabalho das mulheres, um trabalho que garante que a sociedade funciona, gratuito e invisibilizado. Esta forma de exploração beneficia os homens de uma forma geral, mas o grande beneficiário é precisamente o Estado, que por esta via se demite das suas obrigações sociais. É, pois, possível responder a esta desigualdade de duas formas principais: pela tomada de consciência do lugar de privilégio que a maioria dos homens ocupa nas relações familiares e consequente mudança de atitude e partilha de todas as tarefas e responsabilidades domésticas, por um lado, e assunção das tarefas sociais do Estado, da rede pública de creches às residências assistidas e de cuidados continuados, das cantinas às lavandarias públicas. Reconhecer o estatuto de cuidador/cuidadora informal é questão a que o Estado social pode responder.

 

A gravidez é um determinismo biológico que está na base da desigualdade de género no trabalho assalariado, motivando discriminações e prejudicando as mulheres nas suas carreiras profissionais. Em vez de aumentarem a pressão social e cultural sobre as mulheres para terem filhos, as denominadas “políticas de natalidade” não deveriam focar-se em garantir a igualdade de responsabilidades entre o pai e a mãe? Por exemplo, tornando a licença de paternidade obrigatoriamente equivalente à licença de maternidade? Se a gravidez implicasse o mesmo período de ausência do trabalho para o pai e para a mãe, o género do trabalhador não passaria a ser irrelevante para o empregador?

As políticas de natalidade funcionam muitas vezes como uma espécie de chantagem e violência sobre as mulheres. Insinua-se o seu egoísmo por não terem ou terem cada vez menos filhos, abordam-se os números, conclui-se que as famílias têm cada vez menos filhos e que isso tem um forte impacto na sustentabilidade das sociedades. Todavia, há um dado nos estudos que geralmente é ignorado, aquele que refere as mulheres que querem ser mães e não podem, porque a sua condição económica e/ou social não o permite. Como entendo que a maternidade é um direito e não uma obrigação, para mim este dado é muito relevante e não pode ser ignorado.

Concordo que os direitos/responsabilidades relativos à parentalidade devem ser alargados aos membros da parelha, mas temo que isso seja apenas uma parte da resposta necessária. A verdade é que sem sistema público de creches e infantários, sem salários que permitam fazer face às despesas que necessariamente aumentam com a chegada de crianças, sem redução do horário de trabalho que permita que as relações de parentalidade sejam efetivas, o alargamento dos direitos a ambos os sexos, por justo e necessário que seja, apenas distribui o sufoco. A sociedade como um todo, mas em particular o Estado e as entidades empregadoras, têm de aceitar que a maternidade e a paternidade não são custos sociais, mas ganhos sociais. Enquanto o encararem como custo, as pessoas que decidem ter filhos continuarão a ser heroínas. Mas nós não queremos uma sociedade de heroínas e heróis, queremos uma sociedade de direitos, uma sociedade em que a maternidade e a paternidade não sejam direitos descartados por constrangimentos de diversa ordem, nomeadamente a económica.

 

“A verdade é que sem sistema público de creches e infantários, sem salários que permitam fazer face às despesas que necessariamente aumentam com a chegada de crianças, sem redução do horário de trabalho que permita que as relações de parentalidade sejam efetivas, o alargamento dos direitos a ambos os sexos, por justo e necessário que seja, apenas distribui o sufoco”.

 

No manifesto identificam-se algumas reivindicações concretas: salário igual para trabalho igual, reposição da contratação coletiva como forma de proteger o trabalho e combater as desigualdades, uma escola empenhada na educação sexual inclusiva, gratuitidade dos produtos de higiene, alteração da lei da nacionalidade, etc. O sucesso da Greve Feminista será medido pelo grau de concretização destas reivindicações? Ou será uma iniciativa mais centrada no plano simbólico, alertando para a violência e desigualdade de género e apelando a uma mudança de comportamentos e mentalidades?

O sucesso da Greve Feminista é mensurável desde o dia em que decidimos convocá-la. Queremos que as mulheres parem, evidentemente, porque essa é a forma de mostrarmos à sociedade que sem nós ela não funciona. No entanto, cada passo que damos neste processo de construção é um ganho. Antes de começarmos o processo de construção da Greve Feminista, não estávamos articuladas. Hoje temos núcleos no Porto, em Lisboa e Coimbra, os locais de sempre, mas também em Amarante, Viseu, Belmonte, Covilhã, Fundão, Vila Real, Braga. Estamos a caminho de Aveiro e Viana do Castelo.

Isto é uma vitória enorme e é ela que nos permite construir a Greve e continuar o caminho para além dela. Sabemos que no dia 9 de março o país não terá mudado tanto como queremos e precisamos, mas sabemos também que nada será como antes. Temos reivindicações concretas e queremos respostas, mas queremos também que o país saiba e assuma que há problemas sérios de desigualdade, exploração e opressão. Ter consciência deles, visibilizá-los, discuti-los e avançar respostas serão importantes vitórias. E nada disto é simbólico, pelo contrário, é muito concreto.

 

As críticas à sociedade de consumo, à destruição ambiental e à repressão dos migrantes são vertentes do protesto em que a questão de género não é tão evidente. Por exemplo, as alterações climáticas não afetam os homens como as mulheres? Porque é que incluíram esses temas no manifesto?

As mulheres representam 43% da mão de obra agrícola no mundo. Representam também 70% dos pobres, com diferenças de rendimentos – em comparação com os homens – que podem chegar aos 50%. Produzem entre 60 e 80% dos alimentos dos países em desenvolvimento, sobretudo nas regiões mais pobres, e têm mais dificilmente do que eles acesso a recursos como a terra, o crédito e acesso à educação. Quando há seca, são as mulheres que têm de caminhar mais quilómetros para ir buscar água. Os papéis tradicionais que lhes estão destinados aumentam a sua vulnerabilidade, precariedade e maior risco de violência sexual quando em situação de catástrofe natural e confrontos bélicos. A própria ONU o reconhece e, por essa razão, articula as políticas de combate às alterações climáticas com questões de género.

 

“A nossa perspetiva é sempre a de somar gente e experiências diversas, por isso temos um manifesto que procura incluir e não excluir. Se conseguirmos juntar o movimento social ao movimento sindical e partidário, a agenda da igualdade terá mais força e centralidade. É nesse sentido que estamos a trabalhar”.

 

Esperam contar com o apoio de sindicatos e partidos políticos? Esse apoio será importante ao nível logístico e para o reforço da capacidade de mobilização de participantes na Greve Feminista?

Os sindicatos e os partidos políticos são importantes espaços de organização das pessoas e de reivindicação de direitos. Queremos muito que se juntem à Greve, porque esse é também o seu espaço, e temos muita confiança em que isso venha a acontecer. A nossa perspetiva é sempre a de somar gente e experiências diversas, por isso temos um manifesto que procura incluir e não excluir. Se conseguirmos juntar o movimento social ao movimento sindical e partidário, a agenda da igualdade terá mais força e centralidade. É nesse sentido que estamos a trabalhar.

 

A Greve Feminista será uma iniciativa exclusivamente de e para mulheres, ou será aberta à participação de homens feministas?

A Greve Feminista pretende demonstrar que as mulheres são a base de sustentação das sociedades, que se nós pararmos, o mundo pára também. Por 24 horas queremos tornar visível o nosso trabalho, queremos que as pessoas todas tomem consciência do tanto que fazemos e em situação tão desigual. O caminho que queremos percorrer é aquele que vai da tomada de consciência à alteração do estado das coisas. Nesse sentido, o apelo é para que as mulheres parem, para que nesse dia não trabalhem nem vão às aulas. Um dia sem trabalho feminino. No entanto, esta Greve tem e terá o apoio de muitos homens. Estar solidário com a Greve Feminista passa por recusar desempenhar as tarefas da colega em greve, passa por se juntarem aos homens que estão já a ajudar na construção da Greve, pensando e organizando as estruturas de apoio que permitirão que as mulheres façam Greve, como sejam a guarda das crianças, a “cantina coletiva”, etc.

 

“Trump e Bolsonaro são protagonistas de escolhas políticas e económicas que encaram a igualdade como inimigo, seja ela a de género ou a racial, e por isso desenvolvem toda uma retórica – que desdenha das conquistas civilizacionais e da evidência científica – para procurarem justificar o segregacionismo e o apartheid social que estão na matriz do seu pensamento”.

 

Como é que perspetiva a emergência de líderes políticos assumidamente misóginos como Donald Trump nos EUA ou Jair Bolsonaro no Brasil? Considera que é uma expressão política de reaccionarismo perante a emancipação das mulheres?

A vitória da extrema-direita é um preocupante sinal. As campanhas de Donald Trump e de Jair Bolsonaro foram em parte construídas tendo por base um discurso misógino e racista. Há toda uma tentativa de fazer passar por natural e normal aquilo que não o é. É um retrocesso gigante e muito perigoso. Trump e Bolsonaro são protagonistas de escolhas políticas e económicas que encaram a igualdade como inimigo, seja ela a de género ou a racial, e por isso desenvolvem toda uma retórica – que desdenha das conquistas civilizacionais e da evidência científica – para procurarem justificar o segregacionismo e o apartheid social que estão na matriz do seu pensamento.

A resposta das mulheres a estas políticas tem sido uma lição de cidadania e ativismo global: da Marcha das Mulheres em 2017 no dia seguinte à tomada de posse de Donald Trump, até ao movimento #EleNão contra Jair Bolsonaro. As mulheres estão a ser protagonistas, porta-vozes das suas reivindicações, estão a escrever a sua história. São os movimentos feministas interseccionais que são a cara e o espaço de resistência à proliferação do ódio. Se por um lado a extrema-direita através das fake news e do populismo direciona o desagrado generalizado que muitas pessoas sentem relativamente à falha do sistema económico e social (as pessoas continuam a ser pobres, a não terem acesso à saúde e educação, etc.) contra as minorias (mulheres, LGBT, pessoas racializadas, indígenas, etc.), são os movimentos feministas que estão a trazer outras respostas mais emancipadoras e igualitárias aos problemas económicos e sociais do mundo.

 

 

 

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