A seleção de futebol ficou pelo caminho e Ronaldo foi pregado à cruz. Por tudo o que fez ao longo destas duas décadas talvez a cruz mediática seja mesmo a superfície mais adequada para este longevo pôr do sol – não há santo sem algum martírio e Ronaldo procura esse singular troféu com a sua habitual avidez sobrenatural. Ora bem, eu não ambiciono discutir as opções técnicas de Roberto Martinez – ouso apenas perguntar se ele é parente, mesmo que muito distante, de um tetravô em comum do empresário Jorge Mendes.

A esta banal provocação, junto uma outra constatação: a nossa pátria foi bafejada pela sorte de dar à luz tantos treinadores como habitantes. Na verdade, somos uma pátria em chuteiras (Nélson Rodrigues dixit). A esta invencível armada de especialistas deixo, portanto, a análise técnica das causas que nos conduziram à frustração futebolística mais recente, embora, permito-me rematar o tema com uma singela afirmação: quanto menos alguém sabe de um assunto, mais julga que sabe e mais nos impõe a sua definitiva opinião. Numa época em que o romano polegar vale tanto na arena pública como anos e anos de experiência, não penso que seja preciso acrescentar mais nada à nossa omnívora vacuidade.

Sobre esta interminável liturgia ronaldiana interessa-me ainda um outro capítulo, que contém versículos mais generalizáveis: o corporativismo, no caso o corporativismo dos jogadores da seleção nacional, mas que, na realidade, traduz uma tendência que expõe um lamentável traço de carácter que nos define como povo – o horror ao confronto, à autocrítica e à mudança.

Como já aqui escrevi, citando Vasco Pulido Valente, os bordéis não se reformam por dentro, e essa pode ser uma razoável explicação para esta nossa patologia cultural. Como hoje se diz em português analfabeto, é assim: imaginemos que em certa organização alguma coisa está a correr mal, anos e anos de problemas que se repetem com resultados negativos para todos. Isto pode acontecer numa empresa, num governo, num sensível departamento do Estado ou numa câmara municipal.

O comportamento dos responsáveis pela calamidade não é assumirem o problema. Fecham-se como as ostras, enfiam a cabeça na areia como as avestruzes. Está alguma coisa mal na Câmara Municipal de Lisboa? Está alguma coisa mal na Procuradoria-Geral da República? Não está – é tudo uma cabala. Vejam bem, os jogadores da seleção em momento algum enfrentaram ou enfrentarão a omnipresença de Ronaldo. E contra isto, batatinhas. O futebol sempre foi um magnífico reflexo da nossa vida coletiva – por uma vez, olhemo-nos de frente ao espelho.