Quando entrei no curso de psicologia em 1992 era comum as pessoas confundirem psicologia, parapsicologia e até certas práticas tidas como “bruxaria”. O número de psicólogos em Portugal era muito baixo quando nos comparávamos com outros países do “mundo ocidental”.

Os cursos de psicologia eram mais ou menos meia dúzia deles. Necessariamente, o acesso aos serviços dos psicólogos era reduzido e difícil, quase inexistente nos serviços públicos. A ida ao psicólogo era coisa pouco assumida, envergonhada e associada ao estigma existente sobre a doença mental. O conhecimento da população sobre o papel do psicólogo era muitíssimo reduzido e, reflexo disso, também não o era menos entre a classe política dirigente.

Ao longo dos anos seguintes o número de diplomados em psicologia foi crescendo, acompanhado da explosão do número de cursos de psicologia, que em 2008, ano de criação da Ordem dos Psicólogos, era de 38. Apesar de alguma evolução na literacia sobre a profissão e na sua crescente integração na sociedade, nos diversos sectores público, social e privado, o desconhecimento continuou grande e o pouco conhecimento existente estava centrado na actividade clínica dos psicólogos. Era assim em 1997. Era também assim em 2008.

Recordo-me em todo esse período do esforço necessário, durante tantos anos, para junto do parlamento explicar o papel dos psicólogos nos mais diversos contextos, o seu impacto na saúde pública e os riscos de uma profissão até então não regulada. Até aí, diplomados em psicologia, mas não só, se pretendessem, poderiam obter uma carteira profissional na antiga instituição responsável pela inspecção do trabalho. Assim, quando a Ordem foi criada em 2008 existiam milhares de psicólogos em actividade.

Pouco tempo depois da eleição dos primeiros órgãos sociais da OPP já era possível perceber muitos dos problemas da profissão em termos identitários, de desenvolvimento das boas práticas, da sua formação de base, da falta de conhecimento da sociedade sobre o que faziam, do ainda menor reconhecimento, de uma valorização insipiente e um consequente desemprego muito elevado, chegando a situar-se nuns trágicos dois dígitos.

A saúde mental, não só em Portugal, mas também, tem sido invariavelmente notícia devido à evidência científica demonstrar uma tendência de crescimento de consumos de psicofármacos, sofrimento psicológico, perturbações comuns como a depressão e a ansiedade, associadas a um difícil acesso aos serviços na área da saúde mental.

Ainda hoje, apesar do recente investimento no número de psicólogos nas escolas (quase 800 em 2016 para cerca de 1800 em 2024), o lento aumento do número de psicólogos no SNS (de 917 em 2017 para cerca de 1200 actualmente), a presença cada vez maior de psicólogos noutros serviços públicos, desde a assessoria a tribunais, comissões de protecção de menores, instituições da área social em geral, no desporto e nas organizações, a psicologia pode até estar por todo o lado, mas não os psicólogos.

É certo que muito mudou em termos de afirmação da profissão, do seu reconhecimento e da literacia existente sobre o que fazem os psicólogos. Hoje, a ciência que estuda o comportamento e os processos mentais, a psicologia, é naturalmente um contributo mais presente, como outras disciplinas do saber, aquando da discussão dos desafios societais, da saúde, à educação, da pobreza, à justiça e inclusão, do ambiente às migrações e à paz.

Hoje, esta ciência é já considerada uma das ciências hub, das que mais contribui para outras ciências e que delas recebe. Hoje, os seguros de saúde e a ADSE têm coberturas mais abertas e inclusivas aos atos dos psicólogos. Hoje, entre 28.000 psicólogos, o desemprego é residual. Hoje, ir a um psicólogo tornou-se algo natural, mas apesar de ser muito mais acessível que outrora, ainda não acessível para uma boa parte da população.

O desenvolvimento foi de tal ordem ao longo destes 15 anos que alguns, porventura surpreendidos com a transformação, falam da psicologização da sociedade.

É curioso, tendo em conta que tanta gente ainda sofre sem conseguir aceder aos serviços dos psicólogos. É curioso, pois sem prejuízo de algum crescimento, continuamos a não aproveitar o potencial dos psicólogos para a melhoria do desempenho das pessoas e das equipas, tanto no desporto, como nas organizações ou no mundo do espectáculo. É curioso, tendo em conta que para uma boa parte da população e particularmente nos centros de saúde não encontramos mais do que cerca de 300 psicólogos para todo o país.

Assim, é muito curioso que se fale em psicologização. Só se psicologização significar processo de desenvolvimento sócio económico promotor do conhecimento sobre o comportamento das pessoas e sobre o funcionamento dos seus processos mentais na sociedade. Porque se é para designar falar-se de psicólogos e psicologia mais do que se devia ou aceder-se mais do que o necessário… só se for noutro mundo.

Os factos não dizem isso, mas tão só que estamos muito melhor do que estávamos. Que há menos estigma. Muito menos. Todavia, se começarmos a relativizar o sofrimento e regressarmos a crenças de fraqueza associada a quem sofre, vive com pouco bem-estar ou mesmo com doença mental, em qualquer uma das circunstâncias sentido o impacto negativo nas suas vidas profissionais, pessoais e familiares, estaremos a contribuir para esse mesmo dito estigma. Estaremos a contribuir para mais sofrimento desnecessário.

Isto não é igual às ideias de felicidade para todos a toda a hora. Confundindo conceitos. A não ser que quando falamos dessa suposta psicologização estejamos a referirmo-nos à banha da cobra e aos interesses económicos de alguns que pretendem que qualquer pessoa aplique umas técnicas da psicologia… e quando se começar a questionar… e a falar dos problemas disso para a segurança e saúde das pessoas, se queira aproveitar alguma insegurança dos legisladores e falta de domínio técnico e científico sobre o tema para querer, sobre a capa de algo novo, legitimar o ilegal e perigoso para o consumidor.

A não ser que a psicologização seja agora sermos todos “psicoterapeutas” sem antes sermos profissionais de saúde, como médicos ou psicólogos. A não ser que a psicologização seja a contratação por muitas empresas de “coachs”, para mais uma vez aplicarem umas técnicas da psicologia sem serem psicólogos. A não ser que psicologização seja transformarmos cada um e qualquer acto dos psicólogos em profissões autónomas. Sem grande controlo ou regulação. Sem formação ampla e mais exigente.

Se não for por estas razões, muitas vezes até baralhadas por pseudociência, apresentando técnicas da psicologia como arte e não como ciência, então talvez seja apenas a insegurança de quem receia o que desconhece, não se identifica com o conhecimento científico actualizado de uma ciência recente e das suas implicações práticas em termos de transformações sociais, já hoje tão evidentes.

Se por psicologização da sociedade entendermos mais acesso aos psicólogos, mais literacia em saúde, mais conhecimento sobre a profissão e como os seus contributos podem ser utilizados para o desenvolvimento e coesão social, então ainda bem. Se assim for, talvez estejamos simplesmente a reduzir ao mínimo o estigma sobre a psicologia e os psicólogos. Se assim for apenas estaremos a aproveitar mais e melhores contributos de uma ciência como o fazemos com tantas outras. Todos beneficiaremos com isso.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.